A tortura e os mortos na ditadura militar

Do blog Jeocaz
A tortura no Regime Militar
O século XX ficou marcado como o século dos genocídios. A presença de regimes opressivos e totalitários, que se mantiveram através da força bruta, originaram os métodos científicos de tortura, disseminados por todas as nações do planeta. Quem pensa que a tortura é fruto do século que passou engana-se, desde os primórdios da história universal que o homem convive com ela. Dos antigos egípcios aos mesopotâmios, da inquisição medieval aos regimes totalitaristas nazistas, fascistas e stalinistas; a tortura foi uma forma que se desenvolveu para extrair depoimentos de oposicionistas, intimidar a população e consolidar os governos ilegítimos, construídos sem a participação ou o consentimento popular.
No Brasil do século XX, a tortura foi praxe nos dois maiores períodos ditatoriais que o país viveu, na época do Estado Novo (1937-1945) e do regime militar (1964-1985), sendo institucionalizada neste último período, banalizando-se e revelando-se como um método eficaz de garantir um Estado de ilegalidade.
Foi durante a ditadura militar que as maiores atrocidades foram cometidas contra os que se opunham ao regime. Neste período os estudantes, os intelectuais, os engajados políticos, foram as principais vítimas do sistema que contestavam. Em plena Guerra Fria, a elite brasileira posicionou-se do lado dos Estados Unidos e da direita ideológica. Ser comunista passou a ser terrorista. Combatê-los era, segundo a visão do regime, defender a pátria de homens que comiam criancinhas, pregavam o ateísmo e destruíam as igrejas e os conceitos familiares. No engodo de proteger o Brasil da ameaça comunista, instalou-se uma ditadura, que para manter os princípios da caserna ortodoxa, calou, torturou e matou sem o menor constrangimento, centenas de brasileiros.
A tortura durante o período do regime militar não livrou o Brasil dos militantes de esquerda, tão pouco destituiu da mente das pessoas o direito à liberdade de expressão que todos sonhavam. Se na sua propaganda o regime salvou o Brasil de terroristas comunistas, nos seus porões ela garantiu a sobrevivência de 20 anos de um Estado ilegítimo, feito sob a força bruta e o silêncio dos seus cidadãos.
Identificação dos Torturados
Para que se perceba os princípios que regeram a tortura na época do regime militar, é preciso que se perceba também quem eram os torturados, ou os que se enquadravam nesse perfil de sórdida arbitrariedade. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a Europa e o mundo foram divididos pelos aliados vencedores e por suas ideologias. Objetivamente, Estados Unidos e União Soviética formaram duas forças antagônicas que ao encerrarem uma guerra, construíram uma outra, a chamada Guerra Fria.
Antes de entrar no turbilhão da Guerra Fria e posicionar-se em um dos lados, o Brasil encerrou a ditadura do Estado Novo, em 1945. Em 1946 o país promulgou uma nova Constituição, entrando numa nova fase democrática. Graças à nova Constituição, o Partido Comunista do Brasil, que se iria tornar Partido Comunista Brasileiro em 1960, o PCB, existente desde 1922, pôde finalmente ser legalizado. Quando da legalização, o PCB era o quarto partido do país, com dezessete deputados, um senador e a maioria dos vereadores da Câmara do Distrito Federal, na época o Rio de Janeiro.
Em 1947 os princípios da Guerra Fria foram estabelecidos, espalhando-se pelo mundo. Neste ano realiza-se a Conferência Interamericana de Manutenção da Paz e Segurança, em Petrópolis; dela participou o então presidente argentino Juan Perón. Na conferência foi assinado o Tratado de Assistência Recíproca, que permitia a intervenção norte-americana onde quer que a paz e a segurança estivessem ameaçadas. O Brasil entrava para a gestação da Guerra Fria, posicionando-se ao lado dos EUA. Já integrado nos princípios da Guerra Fria, neste 1947, deputados do PTB propuseram a cassação do PCB baseado no texto da Constituição, que vedava qualquer partido que contrariasse em seu programa o regime democrático, e os comunistas, contrários às posições difundidas por Washington, passaram a ser vistos como inimigos do regime vigente. Em outubro o Brasil rompe relações diplomáticas com a União Soviética. O PCB, que obtivera o terceiro lugar do total de votos nas eleições estaduais, tem a legenda cassada numa decisão tomada pela diferença de um voto. No começo de 1948 os deputados, senadores e vereadores eleitos pela legenda tiveram seus mandatos cassados e o PCB entrou definitivamente na clandestinidade. Desde então o partido escondeu-se por trás de outras legendas.
No princípio da Guerra Fria, a doutrina francesa do “inimigo interno” é adotada pelos norte-americanos. O inimigo não era mais uma nação expansionista, como na época da Segunda Guerra Mundial, mas o cidadão invisível, que habitava o seu país, mas era contra o regime nele estabelecido. O inimigo era todo aquele cidadão que se opunha aos princípios da democracia desenhada pelos americanos, da sua visão de mundo livre, posicionando-se favorável ao mundo socialista.
Estabelecido o conceito de “inimigo interno” (no caso os comunistas), a ele juntou-se a doutrina da “segurança nacional”. As Forças Armadas do Brasil e da América Latina, formadas por uma elite histórica e de forte conotação de direita, deixaram-se seduzir por estes conceitos. Dentro da caserna, os princípios que identificavam os “inimigos internos” eram passados hierarquicamente, e esses inimigos ganhavam identidades ideológicas: eram os próprios compatriotas comunistas, os de esquerda e todos aqueles que se opunham ao lado ocidental da Guerra Fria, ou seja, ao regime estabelecido pelos norte-americanos.
Os “inimigos internos” do Brasil, especificamente os comunistas, quando estabelecida a ditadura militar em 1964, paradoxalmente eram considerados traidores dos princípios “democráticos” e tornar-se-iam o principal alvo da tortura, os comunistas seriam os torturados.
Atos Institucionais e Órgãos de Informação Moldam a Ditadura e os Princípios da Tortura
Uma vez estabelecida a ditadura militar no Brasil, em 1 de abril de 1964, era preciso sustentá-la e legitimá-la. Apoiada logisticamente pelos EUA, baseando-se principalmente nos princípios anticomunistas da Guerra Fria, será dentro da Escola Superior de Guerra que se formulará os princípios da doutrina da segurança nacional, tendo como alvo o combate à esquerda, à eliminação dos “inimigos internos”. Para que se estabeleçam tais princípios, atos institucionais e leis repressivas dão legitimidade ao regime, e órgãos de informação são criados para que possam vigiar, identificar e eliminar o inimigo.
Em 9 de abril de 1964 é editado o primeiro Ato Institucional, que passaria para a história como AI-1, que legitimava o governo, estabelecendo 60 dias para que se acabasse o regime de exceção. O AI-1 dava poderes ao regime militar para cassar mandatos, suspendendo os direitos políticos por dez anos. João Goulart, Luiz Carlos Prestes, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e Leonel Brizola são os primeiros cassados. O expurgo atingiu governadores, 50 deputados, 49 juízes, 1200 militares e 1400 civis.
Em 27 de outubro de 1965 foi editado o AI-2, estabelecia-se que as eleições para presidente seriam de forma indireta e sem possibilidades de reeleição; dissolvia os partidos existentes desde 1945, criando o bipartidarismo, formado pela Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido de base de apoio ao regime, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), a oposição consentida. Para garantir a maioria do governo no STF (Supremo Tribunal Federal), o AI-2 aumentava o número de ministros de 11 para 16.
O AI-3 é editado em 5 de fevereiro de 1966, reafirmando o regime militar estabelecido em 1964, definindo as eleições indiretas para os governadores dos estados, com votação nominal nas Assembléias Legislativas estaduais. Estabelecia ainda, que os prefeitos de capitais seriam nomeados pelos governadores. Com este último ato, o governo militar, estabelecido na figura do presidente general Humberto de Alencar Castelo Branco, consolida a ditadura no Brasil.

Legitimada através de atos institucionais, ao mesmo tempo a ditadura criava órgãos para vigiar e manter sob controle o pensamento em todos os setores da população. Sob as perspectivas mencionadas, surgiu, em 13 de junho de 1964, o Serviço Nacional de Informações (SNI), com a finalidade de coordenar por todo o território nacional as atividades de informação e contra-informação, assegurando assim, os conceitos estabelecidos pela doutrina da Segurança Nacional. Criado pelo general Golbery do Couto e Silva, o SNI veio à tona com um acervo de três mil dossiês e cem mil fichas com informações sobre as principais lideranças políticas, sindicais, estudantis e empresariais do Brasil. O SNI espalhou os seus tentáculos por toda a parte, funcionando durante a ditadura como uma polícia secreta comparável às SS de Hitler. Seus agentes infiltrados acompanhavam os considerados subversivos, doutrinavam colaboradores, arrebanhando voluntários por todas as partes, vigiando desde as igrejas aos meios de comunicação.
A partir do SNI, um eficiente mecanismo repressivo foi montado, com métodos eficazes de vigilância e controle sobre o cotidiano dos brasileiros, obedecendo a uma hierarquia. O SNI assessorava diretamente ao presidente do Brasil; os ministérios eram atendidos pelas DSIs (Divisões de Segurança e Informação); sendo os ministérios civis, autarquias, empresas e órgãos públicos atendidos pelas ASIs (Assessorias de Segurança e Informações).
Órgãos de Informação Militares e das Polícias Federais e Civis Exercem a Tortura
Subordinados ao SNI, órgãos de repressão e tortura foram estabelecidos. Dentro das Forças Armadas, as três armas montaram individualmente os seus centros de informação.
No governo de Castelo Branco o Exército quis criar o seu centro de informações, mas com as restrições do presidente, o CIEX (Centro de Informações do Exército) só teve o seu projeto implementado no governo Costa e Silva. O CIEX teria grande alcance nacional, tornando-se um dos principais órgãos de tortura e repressão.
A Marinha tinha o seu órgão de informações, o CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), desde 1955, para tratar das questões fronteiriças e da diplomacia. Aos poucos o órgão foi perdendo as suas reais funções, enredando-se cada vez mais na política repressiva, especializando-se em combater a luta armada.
Em 1968 a aeronáutica toma a iniciativa de criar o seu órgão de informações, CISA (Centro de Informações da Aeronáutica), sendo os seus mentores treinados no exterior. Mas a sua montagem só ocorreu já no governo Médici, adotando em 1970, a estrutura de combate e repressão à luta armada, tendo grande atuação na repressão aos guerrilheiros.
Ainda subordinados ao SNI estavam a polícia federal e as polícias estaduais e o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). A partir de 1969, surgiu em São Paulo a Operação Bandeirantes (Oban), organização clandestina, formada por militares, agentes e delegados civis e federais, que torturavam e desapareciam com militantes comunistas. A Oban agia à margem da lei, tornando-se poderosa, financiada por grandes empresas como a General Motors, Ford e Ultragaz. A experiência da Oban serviu para unir todos os órgãos repressivos, desde então passaram a atuar em conjunto os órgãos de informação da polícia federal, polícia militar e DOPS. Em janeiro de 1970 foram criados os DOI (Departamento de Operações e Informações) e os CODI (Centro de Operação e Defesa Interna). O DOI-CODI na prática integrava todos os órgãos repressores e legalizava a Oban.
O DOI-CODI transformar-se-ia numa máquina de repressão e tortura, estendendo os seus tentáculos além das fronteiras do país, infiltrando-se no Chile, Uruguai, Bolívia e Argentina. O DOI-CODI, assim como a antiga Oban, recebia grandes recursos financeiros, sendo dotado de tecnologia, tendo as suas atividades orientadas pela lógica da disciplina militar.
Todos estes órgãos institucionalizaram a tortura, constituindo um grande aparelho repressivo que agiria de forma brutal e sanguinária sobre aqueles que contestavam o regime militar. Agentes especiais eram formados na ESNI (Escola Nacional de Informações), criada em 1971. Os melhores alunos eram enviados para o Panamá, cursando a Escola das Américas, mantida pela CIA, lugar onde formaram grandes ditadores militares, que depois de um golpe, assumiram o poder em vários países da América Latina.
Em dezembro de 1968 Costa e Silva fechou o Congresso, o AI-5 foi decretado, dando plenos poderes ao presidente e, entre outras coisas, abolindo o hábeas corpus aos presos políticos, legalizando a tortura. Nos ventos do AI-5, foi promulgado em 1969 o AI-14, que estabelecia a pena de morte, a prisão perpétua e o banimento do país dos que eram considerados terroristas e atentavam contra a nova Lei de Segurança Nacional.
A Tortura Propriamente Dita
A tortura do regime militar instalou-se no Brasil desde o primeiro dia que foi dado o golpe, em 1 de abril de 1964. A primeira vítima de tortura foi o líder camponês e comunista Gregório Bezerra. No dia do golpe, o coronel Vilocq amarrou Gregório Bezerra com cordas, ordenando que soldados o arrastasse pelas ruas de Recife, humilhando-o com vitupérios verbais, espancando-o com uma vareta de ferro. O coronel incitava o povo para ver o “enforcamento do comunista”. Diante do horror, religiosos telefonaram para o general Justino Alves Bastos, que pressionado, impediu um martírio. Gregório Bezerra levou coronhadas pelo corpo, além de ter os pés queimados com soda cáustica. No dia do golpe, Recife foi um dos lugares que mais sofreu atrocidades dos golpistas, tendo civis agredidos e mortos em passeatas que protestavam a favor da democracia.
Um mês depois do golpe, presos políticos eram conduzidos para o navio Raul Soares, rebocado do Rio de Janeiro até o estuário de Santos, litoral paulista. A prisão flutuante era dividida em três calabouços, batizados com nomes de boates famosas da época: El Moroco, salão metálico, sem ventilação, ao lado da caldeira, ali os prisioneiros eram expostos a uma temperatura que passava dos 50 graus; Night in Day, uma pequena sala onde os presos ficavam com água gelada pelos joelhos; Casablanca, lugar que se despejava as fezes do navio. Os três calabouços eram usados para quebrar a resistência dos presos. Sindicalistas e políticos da Baixada Santista passaram pela prisão flutuante do Raul Soares, que foi desativada no dia 23 de outubro de 1964.
Mesmo diante de tantas evidências, o governo militar jamais admitiu que havia tortura no Brasil, o presidente Castelo Branco chegou a negar publicamente a existência de truculência em seu governo. Mas contrariamente às palavras do presidente, no dia 24 de agosto de 1966, foi encontrado boiando no rio Jacuí, afluente do rio Guaíba, em Porto Alegre, o corpo do sargento Manoel Raimundo Soares, já em estado de putrefação, com as mãos amarradas para trás. O sargento fazia parte dos militares expurgados do exército por causa do seu envolvimento com a militância política no governo João Goulart. O seu corpo trazia marcas de tortura, causando grande comoção e revolta da população na época. Este foi o primeiro caso de tortura e morte que causou grande repercussão, ficando conhecido popularmente como o “caso das mãos atadas”. Os militares prometeram investigar as circunstâncias da morte do sargento e punir culpados, mas arquivaram o caso e jamais tiveram o trabalho de investigá-lo.
Os Métodos de Tortura nos Porões Militares
Quanto mais tempo durava o regime militar, mais pessoas faziam oposição às atrocidades por ele cometidas. Estudantes, padres, intelectuais e vários setores da sociedade passaram a contestar o regime. Aumentava a contestação, a resposta era a intensificação da tortura, conseqüentemente, a sofisticação dos métodos ocasionava um grande número de mortos.
Métodos científicos de tortura foram desenvolvidos. Monstros torturadores escreveriam o seu nome em letras gigantes nas páginas pungentes da história do Brasil. Nomes como o de Sérgio Fleury, uma espécie de Torqueimada da ditadura militar. Fleury levou a tortura para as celas do DOPS de São Paulo, situado na Luz, no prédio que é hoje a Pinacoteca do Estado. Outro lugar de tortura em São Paulo era o DOI-CODI do Paraíso, conhecido como a Casa da Vovó. Os prisioneiros chegavam às mãos de Fleury e dos seus homens já espancados e feridos, sangrando e muitos vezes, já agonizantes. Ali eram pendurados no pau-de-arara, recebendo descargas elétricas. Furadeiras elétricas eram usadas para perfurar corpos, navalhas rasgavam a carne, cigarros queimavam órgãos genitais, mulheres sofriam abusos sexuais. Socos, pontapés, afogamentos, eram complementos às torturas, que ficavam cada vez mais elaboradas.
Os métodos de tortura engendrados recebiam diversos nomes simbólicos, entre eles, os mais comuns registrados e confirmados por aqueles que os sofreu, são:
Pau-de-Arara – O preso era posto nu, abraçando os joelhos e com os pés e as mãos amarradas. Uma barra de ferro era atravessada entre os punhos e os joelhos. Nesta posição a vítima era pendurada entre dois cavaletes, ficando a alguns centímetros do chão. A posição causava dores e atrozes no corpo. O preso ainda sofria choques elétricos, pancadas e queimaduras com cigarro. Este método de tortura já existia na época da escravidão, sendo utilizado em várias fases sombrias da história do Brasil.
Cadeira do Dragão – Os presos eram sentados nus em uma cadeira elétrica, revestida de zinco, ligada a terminais elétricos. Uma vez ligado, o zinco do aparelho transmitia choques a todo o corpo do supliciado. Os torturadores complementavam o mecanismo sinistro enfiando um balde de metal na cabeça da vítima, aplicando-lhe choques mais intensos.
Choques Elétricos – O torturador usava um magneto de telefone, acionado por uma manivela, conforme a velocidade imprimida, a descarga elétrica podia ser de maior ou menor intensidade. Os choques elétricos eram deferidos na cabeça, nos membros superiores e inferiores e nos órgãos genitais, causando queimaduras e convulsões, fazendo muitas vezes, o preso morder a própria língua. As máquinas usadas nesse método de tortura eram chamadas de “maricota” ou “pimentinha”.
Balé no Pedregulho – O preso era posto nu e descalço em local com temperatura abaixo de zero, sob um chuveiro gelado, tendo no piso pedregulhos com pontas agudas, que perfuravam os pés da vítima. A tendência do torturado era pular sobre os pedregulhos, como se dançasse, tentando aliviar a dor. Quando ele “bailava”, os torturadores usavam da palmatória para ferir as partes mais sensíveis do seu corpo.
Telefone – Entre as várias formas de agressões que eram usadas, uma das mais cruéis era o vulgarmente conhecido como “telefone”. Com as duas mãos em posição côncava, o torturador, a um só tempo, aplicava um golpe violento nos ouvidos da vítima. O impacto era tão violento, que rompia os tímpanos do torturado, fazendo-o perder a audição.
Afogamento na Calda da Verdade – A cabeça do torturado era mergulhada em um tambor, balde ou tanque cheio de água, urina, fezes e outros detritos. A nuca do preso era forçada para baixo, até o limite do afogamento na “calda da verdade”. Após o mergulho, a vítima ficava sem tomar banho vários dias, até que o seu cheiro ficasse insuportável. O método consistia em destruir toda a auto-estima do torturado.
Afogamento com Capuz – A cabeça do preso era encapuzada e afundada em córregos ou tambores de águas paradas e apodrecidas. O prisioneiro ao tentar respirar, tinha o capuz molhado a introduzir-se nas suas narinas, levando-o a perder o fôlego, produzindo um terrível mal-estar. Outra forma de afogamento consistia nos torturadores fecharem as narinas do preso, pondo-lhe, ao mesmo tempo, uma mangueira ou um tubo de borracha dentro da boca, obrigando-o a engolir água.
Mamadeira de Subversivo – Era introduzido na boca do preso um gargalo de garrafa, cheia de urina quente, normalmente quando o preso estava pendurado no pau-de-arara. Usando uma estopa, os torturadores comprimiam a boca do preso, obrigando-o a engolir a urina.
Soro da Verdade – Era injetado no preso pentotal sódico, uma droga que produz sonolência e reduz as inibições. Sob os efeitos do “soro da verdade”, o preso contava coisas que sóbrio não falaria. De efeito duvidoso, a droga pode matar.
Massagem – O preso era encapuzado e algemado, o torturador fazia-lhe uma violenta massagem nos nervos mais sensíveis do corpo, deixando-o totalmente paralisado por alguns minutos. Violentas dores levavam o preso ao desespero.
Geladeira – O preso era posto nu em cela pequena e baixa, sendo impedidos de ficar de pé. Os torturadores alternavam o sistema de refrigeração, que ia do frio extremo ao calor exacerbado, enquanto alto-falantes emitiam sons irritantes. A tortura na “geladeira” prolongava-se por vários dias, ficando ali o preso sem água ou comida.
As mulheres, além de sofrer as mesmas torturas, eram estupradas e submetidas a realizar as fantasias sexuais dos torturadores. Poucos relatos apontaram para os estupros em homens, se houveram, muitos por vergonha, esconderam esta terrível verdade.
O Que Fazer aos Corpos dos Mortos Pela Tortura
Para que se desenvolvessem métodos tão sofisticados de tortura, praticados com grandes requintes, era preciso que o governo militar desenvolvesse a propaganda do culpado, cada torturado era culpado, era o temível comunista que assaltava bancos, o terrorista que comia criancinhas, que ameaçava a família, assim, era criado o preconceito contra os torturados, que eram culpados e merecedores de todos os suplícios que se lhe eram impostos em uma sala de tortura.
Os recrutados para exercer a tortura eram indivíduos que recebiam favorecimentos dos seus superiores, gratificações e reconhecimento de heróis, pois ajudavam a livrar o país dos terroristas comunistas. Eram pessoas intimamente agressivas, com desvio de personalidade, que legitimadas em seus atos sem limites, tornavam-se incapazes de ter sentimentos por quem torturava.
Se por um lado a tortura coibia, causava medo e terror em quem se deixara apanhar e, principalmente, em quem ainda estava livre, militando na clandestinidade, por outro lado ela causava um grande problema, como esconder os torturados mortos. O que fazer com os corpos, uma vez que o regime militar negava veementemente a existência da tortura nos seus calabouços?
Para resolver o problema dos torturados mortos, médicos legistas passaram a fornecer laudos falsos, que escondiam as marcas da tortura, justificando a morte da vítima como sendo de causas naturais. Muitos dos mortos pela repressão tinham no laudo médico o suicídio como a causa mais comum, vários foram os “suicidas” da ditadura. Outras causas que ocultavam a tortura nos laudos eram a dissimulação de atropelamentos, acidentes automobilísticos ou que tinham sido mortos em tiroteios com a polícia, jamais eram reveladas as torturas.
Muitos legistas chegavam a apresentar laudos de torturados mortos como se desfrutassem da mais perfeita saúde. Quando não se podia ocultar as evidências da tortura, muitos cadáveres eram enterrados como anônimos, sem que os familiares jamais soubessem o que aconteceu aos corpos dos seus mortos. As valas clandestinas dos mortos da ditadura ocultavam dos familiares a marca das torturas neles praticadas. Entre os médicos legistas que assinaram laudos falsos para encobrir a tortura, tornaram-se notórios Harry Shibata, Isaac Abramovitch e Paulo Augusto Queiroz Rocha.
Mas nem sempre os falsos laudos conseguiram esconder a tortura. Em novembro de 1969, Chael Charles Schreier, militante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), foi preso, torturado e morto. O seu corpo foi enviado para um hospital, portanto ele já estava morto quando lá deu entrada. No relatório do exército, foi dito que Chael Charles Schreier ao ser preso com dois outros companheiros, reagira violentamente com disparos de revólver. Na troca de tiros, os três terroristas saíram feridos, sendo Chael o que estava em estado mais grave, sendo medicado no hospital, entretanto Chael sofreu um ataque cardíaco, vindo a falecer. O que os militares não sabiam é que Chael era judeu, e que para ser sepultado nas tradições da sua família, era realizado o ritual da lavagem do corpo. Durante o ritual, constatou-se que Chael não tinha morrido por um ataque cardíaco, muito menos por ferimentos de balas, mas sim por tortura. O caso veio à tona, tornando-se matéria da revista “Veja” em dezembro daquele ano, a revista trazia na capa o título “Tortura”. Esta exposição constrangeu profundamente o governo do presidente Médici, apesar da reportagem da “Veja” isentá-lo da culpa da tortura e da morte de Chael, responsabilizando os que cercavam o presidente, sem citar nomes ou culpados.
Outro laudo falso, assinado por Harry Shibata, foi o que dizia que a causa da morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida nos porões da ditadura, em 1975, tinha sido suicídio. Desmascarada a farsa, o assassínio de Herzog por tortura teve grande repercussão, fazendo com que o então presidente, general Ernesto Geisel, admitisse que havia tortura nos porões da ditadura, iniciando um processo para desmantelar a máquina científica da institucionalização de tão vergonhosa e sanguinária prática. Também o caso da morte do operário Manoel Fiel Filho alcançou repercussão nacional, provando que a ditadura torturava e matava os seus opositores.
Conseqüências da Tortura no Brasil do Regime Militar
A tortura na ditadura militar tornou-se um instrumento fundamental para assegurar, através do medo e da repressão, a ideologia da caserna, amparada pela Guerra Fria e justificada pelos militares como necessária numa época de perigo à segurança nacional, ameaçada por terroristas comunistas.
Durante o período da ditadura militar, o povo brasileiro foi excluído do direito de participar da vida nacional. Através da força bruta, refletida na tortura, criou-se o medo na população, que por algumas décadas inibiu-se até mesmo dos direitos civis e de consumidor, formando um pacifismo involuntário que se tornou uma característica manipulada do brasileiro.
O governo instalado no dia 1 de abril de 1964, manteve-se contrariando todos os princípios que regem os direitos humanos, traduzidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948. Estes direitos foram negligenciados pelos Estados Unidos, que para manter a sua ideologia e democracia interna, apoiou e financiou sangrentas ditaduras militares em toda a América Latina, exportando para esses países, seus sofisticados métodos de tortura e combate ao perigo da ideologia soviética.
Na violação dos direitos humanos, americanos ensinavam aos policiais brasileiros a seqüestrarem mendigos, e neles desenvolverem métodos eficazes de tortura, que seriam usados nos inimigos do regime.
No período mais intenso da tortura militar, no início da década de setenta, os brasileiros foram ideologicamente divididos pelo governo em dois grupos: o grupo dos “verdadeiros cidadãos” e o grupo dos “inimigos internos”, tornando o princípio arbitrário a principal arma de propaganda difundida pelo regime.
Oficialmente, os inimigos internos do regime militar no período de intensificação total da tortura, de 1969 a 1974, eram os guerrilheiros e revolucionários de esquerda, vistos como terroristas, e que militavam principalmente, no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8); Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares); Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Partido Comunista do Brasil (Pc do B), que promoveu a Guerrilha do Araguaia; Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), liderada por Carlos Lamarca, que se tornou ao lado de Carlos Marighella, os principais inimigos do regime; a Ação Libertadora Nacional (ALN), que de destacou na guerrilha urbana; e, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), combalido por sucessivas divisões que deram origem à maioria dos grupos de resistência à ditadura mencionados. Das organizações citadas, cinco a seis mil pessoas participou da luta armada, um número insignificante quando o país chegava a 100 milhões de habitantes, não justificando a máquina mortífera que as polícias brasileiras e as Forças Armadas criaram, sustentadas na aplicação da tortura como método de repressão.
Além dos mortos e desaparecidos (também mortos, mas jamais tendo sido encontrados os seus corpos), a tortura deixou danos indeléveis aos que sobreviveram a ela, levando alguns ao suicídio, como aconteceu ao dominicano Frei Tito de Alencar Lima. Os que sobreviviam à tortura, eram permanentemente ameaçadas e vigiadas pelo regime opressivo. Até hoje, os torturados têm dificuldade na sua maioria, em falar dos horrores que sofreram nos porões da ditadura.
Os que ousaram a contestar a ditadura eram na sua maioria, jovens idealistas, muitos politizados e engajados, outros em processo de politização, que se atiravam aos ideais, dispostos até mesmo a morrer por eles. A maioria dos torturados que morreram eram jovens.
Mas a ditadura não matou somente os opositores engajados, os chamados comunistas, guerrilheiros e revolucionários, vários foram os inocentes apanhados nas malhas da delação, que pereceram sob tortura sem jamais descobrirem porque estavam a ter tão nefasto destino. Aos inocentes a tortura poderia ser mais intensa, já que nada sabiam, nada podiam revelar.
Findo o regime militar, a tortura foi justificada pelos ex-presidentes ditadores como um mal necessário, como arma de defesa diante de uma guerra que se vivia. Nenhum torturador foi preso ou punido por seus atos, todos foram beneficiados pela lei da Anistia, que em 1979 anistiou os presos políticos, os exilados e os torturadores da ditadura militar. A tortura continua a ser a maior página negra da recente história do Brasil.
Mortos e Desaparecidos
O modelo de tortura empregado pelos órgãos de informação da ditadura militar chegou a ser exportado para alguins países asiáticos, onde governos repressivos assumiram o poder. Curiosamente, países que adotaram regimes socialistas, como o Camboja, foram os que “importaram” os métodos da direita brasileira.
Uma lista oficial dos mortos e desaparecidos no período da ditadura militar (1964-1985), foi divulgada pelo Grupo Tortura Nunca Mais. São considerados desaparecidos casos que se tem dados da tortura cometida contra o militante e da sua eventual morte, mas que o seu corpo jamais foi encontrado ou identificado. Entre os casos está o do Stuart Edgard Angel Jones, que apesar das evidências do seu assassínio, é oficialmente um desaparecido, uma vez que não apareceu um cadáver para oficializar a sua morte. Os mortos foram divididos na lista como militantes políticos e outros, é o caso de Zuleika Angel Jones, mãe de Stuart, cuja morte jamais foi esclarecida. Segue a lista dos mortos e desaparecidos da ditadura militar. Esta lista pode ser encontrada no site do Grupo Tortura Nunca Mais, onde a ficha de cada morto ou desaparecido é divulgada, podendo ser pesquisada.
Mortes Oficiais:
1964
Albertino José de Oliveira 
Alfeu de Alcântara Monteiro
Ari de Oliveira Mendes Cunha
Astrogildo Pascoal Vianna
Bernardinho Saraiva
Carlos Schirmer
Dilermando Mello do Nascimento
Edu Barreto Leite
Ivan Rocha Aguiar
Jonas José Albuquerque Barros
José de Sousa
Labib Elias Abduch
Manuel Alves de Oliveira
1965
Severino Elias de Melo
1966
José Sabino
Manoel Raimundo Soares
1967
Milton Palmeira de Castro
1968
Clóvis Dias Amorim
David de Souza Meira
Edson Luiz de Lima Souto
Fernando da Silva Lembo
Jorge Aprígio de Paula
José Carlos Guimarães
Luis Paulo Cruz Nunes
Manoel Rodrigues Ferreira
Maria Ângela Ribeiro
Ornalino Cândido da Silva
1969
Antônio Henrique Pereira Neto (Padre)
Carlos Marighella
Carlos Roberto Zanirato
Chael Charles Schreier
Eremias Delizoikov
Fernando Borges de Paula Ferreira
Hamilton Fernando Cunha
João Domingos da Silva
João Lucas Alves
João Roberto Borges de Souza
José Wilson Lessa Sabag
Luiz Fogaça Balboni
Marco Antônio Brás de Carvalho
Nelson José de Almeida
Reinaldo Silveira Pimenta
Roberto Cietto
Sebastião Gomes da Silva
Severino Viana Colon
1970
Abelardo Rausch Alcântara
Alceri Maria Gomes da Silva
Ângelo Cardoso da Silva
Antônio Raymundo Lucena
Ari de Abreu Lima da Rosa
Avelmar Moreira de Barros
Dorival Ferreira
Edson Neves Quaresma
Eduardo Collen Leite
Eraldo Palha Freire
Hélio Zanir Sanchotene Trindade
Joaquim Câmara Ferreira
Joelson Crispim
José Idésio Brianesi
José Roberto Spinger
Juarez Guimarães de Brito
Lucimar Brandão Guimarães
Marco Antônio da Silva Lima
Norberto Nehring
Olavo Hansen
Roberto Macarini
Yoshitame Fujimore
1971
Aderval Alves Coqueiro
Aldo de Sá Brito de Souza Neto
Amaro Luís de Carvalho
Antônio Sérgio de Matos
Carlos Eduardo Pires Fleury
Carlos Lamarca
Devanir José de Carvalho
Dimas Antônio Casemiro
Eduardo Antônio da Fonseca
Flávio de Carvalho Molina
Francisco José de Oliveira
Gerson Theodoro de Oliveira
Iara Iavelberg
Joaquim Alencar de Seixas
José Campos Barreto
José Gomes Teixeira
José Milton Barbosa
José Raimundo da Costa
José Roberto Arantes de Almeida
Luís Eduardo da Rocha Merlino
Luís Hirata
Luiz Antônio Santa Bárbara
Manoel José Mendes Nunes de Abreu
Marilene Vilas-Boas Pinto
Mário de Souza Prata
Maurício Guilherme da Silveira
Nilda Carvalho Cunha
Odijas Carvalho de Souza
Otoniel Campos Barreto
Raimundo Eduardo da Silva
Raimundo Gonçalves Figueiredo
Raimundo Nonato Paz ou “Nicolau 21”
Raul Amaro Nin Ferreira
1972
Alex de Paula Xavier Pereira
Alexander José Ibsen Voeroes
Ana Maria Nacinovic Corrêa
Antônio Benetazzo
Antônio Carlos Nogueira Cabral
Antônio Marcos Pinto de Oliveira
Arno Preis
Aurora Maria Nascimento Furtado
Carlos Nicolau
Danielli Célio Augusto Valente da Fonseca
Fernando Augusto Valente da Fonseca
Frederico Eduardo Mayr
Gastone Lúcia Beltrão
Gelson Reicher
Getúlio D’Oliveira Cabral
Grenaldo de Jesus da Silva
Hélcio Pereira Fortes
Hiroaki Torigoi
Ismael Silva de Jesus
Iuri Xavier Pereira
Jeová de Assis Gomes
João Carlos Cavalcanti Reis
João Mendes Araújo
José Bartolomeu Rodrigues de Souza
José Inocêncio Pereira
José Júlio de Araújo
José Silton Pinheiro
Lauriberto José Reys
Lígia Maria Salgado Nóbrega
Lincoln Cordeiro Oest
Lourdes Maria Wanderly Pontes
Luís Andrade de Sá e Benevides
Marcos Nonato da Fonseca
Maria Regina Lobo Leite Figueiredo
Míriam Lopes Verbena
Ruy Osvaldo Aguiar Pfitzenreuter
Valdir Sales Saboya
Wilton Ferreira
1973
Alexandre Vannucchi Leme
Almir Custódio de Lima
Anatália de Souza Alves de Mello
Antônio Carlos Bicalho Lama
Arnaldo Cardoso Rocha
Emanoel Bezerra dos Santos
Eudaldo Gomes da Silva
Evaldo Luís Ferreira Sousa
Francisco Emanoel Penteado
Francisco Seiko Okama
Gildo Macedo Lacerda
Helber José Gomes Goulart
Henrique Ornelas Ferreira Cintra
Jarbas Pereira Marques
José Carlos Novaes da Mata Machado
José Manoel da Silva
José Mendes de Sá Roriz
Lincoln Bicalho Roque
Luís Guilhardini
Luís José da Cunha Manoel Aleixo da Silva
Manoel Lisboa de Moura
Merival Araújo
Pauline Philipe Reichstul
Ranúsia Alves Rodrigues
Ronaldo Mouth Queiroz
Soledad Barret Viedma
Sônia Maria Lopes Morais
1975
José Ferreira de Almeida
Pedro Gerônimo de Souza
Vladimir Herzog
1976
Ângelo Arroyo
João Baptista Franco Drummond
João Fosco Penito Burnier (Padre)
Manoel Fiel Filho
Pedro Ventura Felipe de Araújo Pomar
1977
José Soares dos Santos
1979
Alberi Vieira dos Santos
Benedito Gonçalves
Guido Leão
Otacílio Martins Gonçalves
Santo Dias da Silva
1980
Lyda Monteiro da Silva
Raimundo Ferreira Lima
Wilson Souza Pinheiro
1983
Margarida Maria Alves
Outras Mortes:
Afonso Henrique Martins Saldanha
Antônio Carlos Silveira Alves
Ari da Rocha Miranda
Catarina Abi-Eçab
Iris Amaral
Ishiro Nagami
João Antônio Abi-Eçab
João Barcellos Martins
José Maximiniano de Andrade Neto 
Luiz Affonso Miranda da Costa Rodrigues
Newton Eduardo de Oliveira
Sérgio Correia
Silvano Soares dos Santos
Zuleika Angel Jones
Mortes no Exílio:
Ângelo Pezzuti da Silva
Carmem Jacomini
Djalma Carvalho Maranhão
Gerosina Silva Pereira
Maria Auxiliadora Lara Barcelos
Nilton Rosa da Silva
Therezinha Viana de Assis
Tito de Alencar Lima (Frei)
Desaparecidos no Brasil:
Adriano Fonseca Fernandes Filho
Aluísio Palhano Pedreira Ferreira
Ana Rosa Kucinski Silva
André Grabois
Antônio “Alfaiate”
Antônio Alfredo Campos
Antônio Carlos Monteiro Teixeira
Antônio de Pádua Costa
Antônio dos Três Reis Oliveira
Antônio Guilherme Ribeiro Ribas
Antônio Joaquim Machado
Antônio Teodoro de Castro
Arildo Valadão
Armando Teixeira Frutuoso
Áurea Eliza Pereira Valadão
Aylton Adalberto Mortati
Bergson Gurjão Farias
Caiupy Alves de Castro
Carlos Alberto Soares de Freitas
Celso Gilberto de Oliveira
Cilon da Cunha Brun
Ciro Flávio Salasar Oliveira
Custódio Saraiva Neto
Daniel José de Carvalho
Daniel Ribeiro Callado
David Capistrano da Costa
Dênis Casemiro
Dermeval da Silva Pereira
Dinaelza Soares Santana Coqueiro
Dinalva Oliveira Teixeira
Divino Ferreira de Souza
Durvalino de Souza
Edgard Aquino Duarte
Edmur Péricles Camargo
Eduardo Collier Filho
Elmo Corrêa
Elson Costa
Enrique Ernesto Ruggia
Ezequias Bezerra da Rocha
Félix Escobar Sobrinho
Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira
Francisco Manoel Chaves
Gilberto Olímpio Maria
Guilherme Gomes Lund
Heleni Telles Ferreira Guariba
Helenira Rezende de Souza Nazareth
Hélio Luiz Navarro de Magalhães
Hiram de Lima Pereira
Honestino Monteiro Guimarães
Idalísio Soares Aranha Filho
Ieda Santos Delgado
Ísis Dias de Oliveira
Issami Nakamura Okano
Itair José Veloso
Ivan Mota Dias
Jaime Amorim Miranda
Jaime Petit da Silva
Jana Moroni Barroso
João Alfredo Dias
João Batista Rita
João Carlos Haas Sobrinho
João Gualberto
João Leonardo da Silva Rocha
João Massena Melo
Joaquim Pires Cerveira 
Joaquinzão
Joel José de Carvalho
Joel Vasconcelos Santos
Jorge Leal Gonçalves Pereira
Jorge Oscar Adur (padre)
José Humberto Bronca
José Lavechia
José Lima Piauhy Dourado
José Maria Ferreira Araújo
José Maurílio Patrício
José Montenegro de Lima
José Porfírio de Souza
José Roman
José Toledo de Oliveira
Kleber Lemos da Silva
Libero Giancarlo Castiglia
Lourival de Moura Paulino
Lúcia Maria de Sousa
Lúcio Petit da Silva
Luís Almeida Araújo
Luís Eurico Tejera Lisboa
Luís Inácio Maranhão Filho
Luiz Renê Silveira e Silva
Luiz Vieira de Almeida
Luíza Augusta Garlippe
Manuel José Nurchis
Márcio Beck Machado
Marco Antônio Dias Batista
Marcos José de Lima
Maria Augusta Thomaz
Maria Célia Corrêa
Maria Lúcia Petit da Silva
Mariano Joaquim da Silva
Mario Alves de Souza Vieira
Maurício Grabois
Miguel Pereira dos Santos
Nelson de Lima Piauhy Dourado
Nestor Veras
Norberto Armando Habeger
Onofre Pinto
Orlando da Silva Rosa Bonfim Júnior
Orlando Momente Osvaldo Orlando da Costa
Paulo César Botelho Massa
Paulo Costa Ribeiro Bastos
Paulo de Tarso Celestino da Silva
Paulo Mendes Rodrigues
Paulo Roberto Pereira Marques
Paulo Stuart Wright
Pedro Alexandrino de Oliveira Filho
Pedro Carretel
Pedro Inácio de Araújo
Ramires Maranhão do Vale
Rodolfo de Carvalho Troiano
Rosalino Souza
Rubens Beirodt Paiva
Ruy Carlos Vieira Berbert
Ruy Frazão Soares
Sérgio Landulfo Furtado
Stuart Edgar Angel Jones
Suely Yumiko Kamayana
Telma Regina Cordeiro Corrêa
Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto
Tobias Pereira Júnior
Uirassu de Assis Batista
Umberto Albuquerque Câmara Neto
Vandick Reidner Pereira Coqueiro
Virgílio Gomes da Silva
Vitorino Alves Moitinho
Walquíria Afonso Costa
Wálter de Souza Ribeiro
Wálter Ribeiro Novaes
Wilson Silva

Desaparecidos no Exterior:
Argentina
Francisco Tenório Júnior
Jorge Alberto Basso
Luiz Renato do Lago Faria
Maria Regina Marcondes Pinto
Roberto Rascardo Rodrigues
Sidney Fix Marques dos Santos
Walter Kenneth Nelson Fleury
Bolívia
Luiz Renato Pires de Almeida
Chile
Jane Vanini
Luiz Carlos Almeida
Nelson de Souza Kohl
Túlio Roberto Cardoso Quintiliano
Wânio José de Matos

CENSURA DURANTE O REGIME AUTORITÁRIO

 

GLAUCIO ARY DILLON SOARES 

 

A cronologia da censura


A liberdade de imprensa foi assegurada aos brasileiros em 28 de agosto de 1821, assinada por D. Pedro I. 

Cento e cinqüenta e um anos depois, precisamente no dia 6 de setembro de 1972, o decreto de D. Pedro foi censurado pelo Departamento da Polícia Federal, com a seguinte ordem a todos os jornais do País: "Está proibida a publicação do decreto de D. Pedro I, datado do século passado, abolindo a Censura no Brasil. 

Também está proibido qualquer comentário a respeito". A proibição de se referir, nos meios de comunicação de massa, ao ato de D. Pedro revela a orientação da Censura. Protegida pela própria censura, ela não hesitava em fazer proibições ridículas, segura de que elas não chegariam ao conhecimento público. Houve muitos outros episódios que seriam cômicos, se não fossem humilhantes para o País. A Censura, parte do Estado autoritário, o protegia e, protegendo-o, protegia a si. 

A Censura não atuou de maneira uniforme durante os 21 anos da ditadura. Houve períodos de maior e de menor intensidade. Ela seguiu o mesmo padrão de outros indicadores do grau de autoritarismo das diversas administrações: foi atuante no período imediatamente seguinte ao golpe de 1964 (1); posteriormente, houve flutuações, observando-se ondas que, possivelmente, indicam períodos de maior influência no governo militar, de grupos e pessoas com vocação autoritária. A expansão mais acelerada da ação da Censura teve lugar durante o período mais negro por que o País passou: desde o AI-5, em dezembro de 1968, no governo Costa e Silva, até o fim do governo Garrastazu Médici. Do início da distensão, durante o governo Geisel, até 1976, somente foram controlados alguns aspectos mais gritantes da censura; a partir de 1976, data em que se afirma, o governo Geisel controlou a linha dura, houve uma clara diminuição de suas atividades sem que, não obstante, os seus instrumentos fossem eliminados: o ditador não abriu mão deste instrumento ditatorial. Foi somente no final do governo Geisel e início do governo Figueiredo que a liberdade de imprensa foi restaurada no Brasil. 
A crer nas palavras de Castello Branco e Costa e Silva, assim como no testemunho de muitos dos seus auxiliares diretos, os dois ditadores teriam um compromisso com a democracia, em geral, e com a liberdade de imprensa em particular. Para os seus defensores, este compromisso teve o efeito de evitar que "as coisas fossem ainda piores". Com isso se pretende isentar, no julgamento da História, estes militares pelos atos insofismavelmente ditatoriais que cometeram, acenando com o que teriam impedido que acontecesse. 
 Ato Institucional n. 1, o AI-2 e o absurdo AI-5, quem cassou mandatos de deputados eleitos pelo povo brasileiro. Os atos institucionais, particularmente o AI-5, foram instrumentos ditatoriais de escala maior do que a censura. Além disto, não é verdade que, durante o governo dos dois primeiros ditadores, a liberdade de imprensa tivesse sido rigorosamente respeitada. 

Jornais de esquerda e jornais pró-João Goulart, como Politika, Folha da Semana, O Semanário e outros, foram invadidos e suas oficinas destruídas. Jornais respeitáveis, mas favoráveis a Goulart, como a Última Hora, uma das principais cadeias jornalísticas do País, foram igualmente invadidos e destroçados. O Correio da Manhã, que se opôs radicalmente a Goulart, mas denunciou com veemência os excessos da ditadura foi sistematicamente perseguido: a sua sede foi atacada a bomba, invadida e interditada, uma edição foi sumariamente confiscada e sua proprietária, Niomar Bittencourt, presa por mais de dois meses. Por fim, parcialmente como resultado da perseguição de ditadores que pretenderam ingressar na História como democráticos, o Correio da Manhã fechou as portas. Assim, definir Castello Branco e Costa e Silva como fiéis respeitadores da liberdade de imprensa é um desrespeito aos fatos. O máximo que se pode dizer a favor dos dois ditadores é que, em comparação com o que viria depois, que foi muito pior, os seus governos censuraram menos. A História não esquecerá que foi Castello Branco quem impôs os primeiros atos institucionais ao povo brasileiro, nem que foi Costa e Silva quem assinou o AI-5.

  Foi somente a partir do início do governo Figueiredo que a liberdade de imprensa cumpriu, no Brasil, com as exigências mínimas de uma democracia; mesmo assim, persistiu a censura sobre os meios eletrônicos de comunicação. 

As fontes para o estudo da censura
Devido às suas características, é difícil pesquisar a censura durante a sua vigência; entretanto, há fontes que revelam alguma coisa sobre as intenções dos censores, mesmo durante a vigência daquela.:
1) As proibições ou - como querem alguns - os bilhetinhos entregues pelos censores aos jornais, os quais, durante um período amplo, foram coletados pelos jornalistas. No caso do Jornal do Brasil, foi elaborado um "livro negro" da censura. Entretanto, este livro não foi iniciado juntamente com as proibições, mas posteriormente, ficando as proibições anteriores perdidas. As próprias proibições fornecem informações sobre as suas origens: Elio Gaspari, por exemplo, examinou 74 ordens relativas a assuntos de segurança, enviadas até o início do governo Geisel, concluindo que elas continham informações corretas. Só os mais altos círculos militares tinham conhecimento das notícias cuja divulgação se proibia.
2) As matérias censuradas foram guardadas por alguns jornais e revistas, sendo possível analisá-las, contrastando-as com as publicadas, e obter, assim, informações sobre os objetivos da Censura.
3) Entrevistas com pessoas que participaram desse processo, seja como jornalistas, seja como censores. Pessoas que, enquanto ocuparam um cargo importante, não concederam entrevista e não proporcionaram informação, após a saída do cargo revelaram uma surpreendente disposição para contar a sua versão da censura. Entrevistei várias pessoas, inclusive um ex-diretor do Departamento de Censura Federal.

 


As formas da censura política

 

A censura política foi feita através de diversas formas, e a utilização de uma forma ou de outra tinha conseqüências financeiras e organizacionais, além das obviamente políticas, para o jornal ou revista em questão. A censura prévia implicava seja a presença de uma equipe de censores na Redação, que foi a forma adotada contra vários grandes jornais que se recusaram a se submeter à autocensura, seja a obrigação de enviar a Brasília todos os materiais para que fossem examinados, que foi o caso da imprensa alternativa, geralmente de freqüência semanal. O envio para Brasília representava um problema de difícil solução: a entrega e o recebimento do material deveria ser feito em Brasília, devendo os editores arcar com o ônus do transporte. Isto acarretou a necessidade de manter uma representação permanente em Brasília; conseqüentemente, as publicações que não puderam financiar esses requisitos simplesmente fecharam. 

Além disto, com freqüência os materiais só eram devolvidos em cima da hora de publicação, no dia anterior, deixando pouco tempo para organizar a edição. Era somente então que os editores descobriam quais as publicações que tinham sido censuradas, parcial ou totalmente. Claro que isto afetou a qualidade da publicação, não só pela depuração política e ideológica, por um lado, como pela necessidade de inserir textos improvisados, à última hora, por outro. 

A censura prévia

A censura, entretanto, haveria de sofrer novo recrudescimento a partir de 1970, quando foi aprovado o Decreto-Lein. 1.077, que permitiu a censura prévia. As medidas previstas no Decreto-Lei, em certo sentido, choviam no molhado, porquanto a Lei de Segurança Nacional e o AI-5, já davam margem ao exercício discricionário do poder. A história deste Decreto-Lei ilustra bem o que foram os tempos de Garrastazu Médici: no dia 22 de janeiro, o ditador, em despacho com o ministro Alfredo Buzaid, baixou o Decreto-Lei que instituiu a censura prévia no Brasil, publicado pelo Diário Oficial no dia 26 de janeiro. Na ditadura, os decretos-leis eram baixados, entravam em vigor, e somente depois eram apreciados pelo Congresso, que não podia modificá-los, mas apenas aprová-los ou, pelo menos teoricamente, rejeitá-los. Na Câmara Federal e no Senado, a Arena utilizou o controle das comissões para garantir a aprovação. O Decreto-Lei foi apreciado pela Comissão de Justiça, cujo relator era o deputado Tabosa de Almeida, de Pernambuco, e a votação seguiu rigorosamente as linhas partidárias: o Decreto-Lei foi aceito por nove votos da Arena contra quatro do MDB. Na Comissão de Educação e Cultura, cujo relator era o chefe integralista Plínio Salgado, homem visceralmente contrário a tudo o que fosse democrático, o Decreto-Lei foi aprovado por dez votos a favor contra o voto do único emedebista presente - isso, ironicamente, no dia 13 de maio. Ao ser apreciado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, cujo relator, Eurico Rezende, ficaria indelevelmente associado a uma das instituições mais abomináveis da ditadura, o Decreto-Lei n.º 1.007 encontrou algumas reações. Destacando-se na luta contra a censura prévia, o senador Josaphat Marinho, do MDB, definiu a situação da perspectiva da oposição: "trata-se de matéria que a consciência repele, a Constituição proíbe e a cultura despreza". Na hora da verdade, Antonio Balbino, Josaphat Marinho e Bezerra Neto votaram contra; Aurélio Viana e Milton Campos, doentes, não puderam votar, votando a favor Eurico Rezende (relator), Petrônio Portela, Guido Mondim, Konder Reis, Carlos Lindemberg, Arnon de Mello, Clodomir Millet e, previsivelmente, Dinarte Mariz. Carvalho Pinto, de maneira igualmente previsível, lavou as mãos, abstendo-se sob a alegação de que a Lei de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional tornavam o decreto desnecessário (Folha de São Paulo, 23/05/1977, p. 19). Finalmente, a censura foi instalada no Brasil no dia 20 de maio de 1970, quando o voto de liderança do senador Eurico Rezende, sempre tão disposto a encampar como suas as causas autoritárias, impediu o livre posicionamento dos senadores da Arena e aprovou o Decreto-Lei n.º1.077. Para que a aprovação se desse sem discussão nem dissidentes, foi utilizado outro instrumento da ditadura, o voto de liderança, que impediu os membros das bancadas de votarem de acordo com a sua consciência (4). A partir daí, a censura prévia, originada num ministério dirigido por um candidato integralista não eleito para a Assembléia Estadual de São Paulo, Alfredo Buzaid, passou a ter substrato legal no Brasil. 
A censura prévia foi aplicada quando os jornais recusavam a autocensura. Nem sempre ela se fez através de canais burocráticos; com certa freqüência, o aparelho ostensivamente repressivo de policiais e militares foi usado. Por exemplo, no dia 24 de agosto de 1972, várias viaturas da Rádio Patrulha invadiram o O Estado de São Paulo, um jornal reconhecidamente conservador, que havia feito campanha contra Goulart e apoiado, inicialmente, o golpe militar. Um grande número de policiais, ostensivamente armados com granadas e submetralhadoras, ocuparam e vasculharam a Redação em busca de um noticiário sobre o lançamento da candidatura Geisel à Presidência da República. Como se tratava de um alarme falso, nada encontraram. A partir daquele momento, o O Estado de Sãs Pauto não se submeteu mais à autocensura, passando a ser censurado previamente por uma equipe que se instalou na Redação até o dia 5 de janeiro de 1975, quando, por ocasião do centenário do jornal, ela foi levantada. 

Os bilhetinhos

Durante a vigência da censura prévia, houve vários períodos, cada um com formas de censura dominantes. Durante um amplo período, a censura caracterizou-se por uma série de ordens escritas, detalhadas e freqüentes. O conteúdo e a freqüência dessas ordens, chamadas de "bilhetinhos", ainda estão sujeitos a debate, uma vez que não há indicações de que qualquer dos estudos já realizados tenha uma coleção completa delas: Alberto Dines fez um estudo de 288 ordens recebidas pelo Jornal do Brasil entre setembro de 1972 e dezembro de 1974; Elio Gaspari, que ocupou a editoria política do Jornal do Brasil, analisou 270 ordens dadas durante, aproximadamente, três anos, entre 14 de setembro de 1972 e 8 de outubro de 1975; Silio Boccanera (1978) analisou proibições da mesma fonte, mas o período não está especificado. Marconi (1980) também informa uma freqüência maior (cerca de 300, em 1974) de proibições na Bahia, em contraste com a estimativa de Jary Cardoso de "mais de 300" para o período 1972-75. Não há, até hoje, um levantamento adequado do número de bilhetinhos. Além disto, as proibições de publicar afetaram uns jornais mais do que outros, umas regiões mais do que outras, tornando difícil estimar o seu número em todo o País. Os dados disponíveis permitem estimativas muito grosseiras do número por ano, que variam entre várias dezenas, nos "melhores" anos, e poucas centenas nos piores. 

A freqüência das proibições

As proibições de divulgar entraram em grande escala no cenário jornalístico em 1970. A sua forma variou, desde mensagens escritas em papel timbrado, assinadas por autoridade competente, até telefonemas e bilhetinhos informais, às vezes rasurados, escritos à mão, sem assinatura. Em algumas ocasiões, um bilhetinho continha várias proibições. 
É importante ter em conta que as proibições não foram compiladas e codificadas de maneira sistemática. No Jornal do Brasil, após recebê-las durante algum tempo, os jornalistas começaram a compilá-las em um "livro negro"; outros jornalistas, trabalhando em outros jornais e revistas, fizeram algum tipo de compilação. Tomamos por base o levantamento mais global feito por Marconi, que incluiu as proibições constantes do "livro negro" do Jornal do Brasil. As proibições do "livro negro" foram analisadas previamente por Elio Gaspari, Alberto Dines e Silio Boccanera, que, usando categorias e períodos diferentes, chegaram a conclusões semelhantes às de Marconi e às do estudo que realizei; juntamente com Ana Tereza Lemos Ramos, que forneceu os dados para a presente análise. Estas proibições foram muito numerosas durante a ditadura de Garrastazu Médici, mantiveram-se altas durante o primeiro ano de Geisel, declinando rapidamente a partir de 1975. Se, por um lado, não há dúvida de que a censura durante a ditadura de Geisel foi amena, se comparada com a existente durante a ditadura de Garrastazu Médici, é evidente que ela continuou existindo durante todo o seu governo. A censura sobre os meios eletrônicos continuou, inclusive, durante o governo Figueiredo. 
A freqüência com que as proibições foram feitas coincide com outros dados que indicam que a repressão diminuiu depois da posse de Geisel. De acordo com uma série de dados, houve 27 proibições em 1970; 52 em 1971; 80 em 1972; 159 (ou seja, o dobro) em 1973; 162 em 1974; declinando rapidamente para 18 durante o primeiro ano completo da administração de Geisel, 1975, nível em que permaneceu até 1978. Os bilhetinhos (as proibições) cresceram rapidamente de 1970 a 1973; 1973 e 1974 representaram oauge, decaindo aceleradamente a partir daí. Outra série analisada oferece resultados semelhantes: 27, 67, 107, 222, 194, baixando a 38, em 1975-76, e 41, em 1977-78. O período 1975-78 foi típico do mandato de Geisel: uso moderado de um recurso ditatorial, sem compromisso com a sua extinção. Na hora da verdade, Geisel preferiu governar com os instrumentos da ditadura e não com os da democracia. 

A extensão da censura

A escassez de informações a respeito da censura deixa no ar uma série de questões. Uma delas refere-se a sua extensão, a quanto era censurado. A resposta, mais uma vez, tem de ser matizada, porque a extensão variou de período para período e de um jornal (ou revista) para outro. 
Um dos mais afetados pela censura foi o Opinião, que juntamente com o Movimento, Tribuna da Imprensa O São Paulo foram censurados com base no artigo 9 do AI-5. Opinião resistiu a quatro anos e meio de pressões: 221 dos 230 números foram feitos com censura prévia e, das 10.548 páginas escritas pelos seus colaboradores, somente 5.796 chegaram aos leitores. O número 24 foi apreendido mas voltou a circular; os números 26, 195, 205 e o último número, 231, foram efetivamente apreendidos. Além disto, o jornal sofreu um atentado a bomba em 1976. 




Vemos que a censura ao Opinião foi extremamente dura, e que seria difícil para este semanário resistir incólume à perda de quase metade do seu material escrito. Outros jornais políticos, como Movimento Tribuna da Imprensa, também foram muito atingidos. Somente em 1976, já no governo Geisel, a Censura vetou totalmente nada menos do que 1.170 artigos. O Movimento, durante três anos de censura prévia, teve 3.093 artigos vetados, num total de 18.761 laudas, além de 3.162 ilustrações (Marconi, 1980, p. 76). Ou seja, perto de 20 artigos e cem laudas por número! 
A revista Veja esteve sob censura prévia durante 119 edições, tendo 10.352 linhas cortadas, 60 matérias totalmente proibidas, assim como 44 fotografias e 20 desenhos e charges (Marconi, 1980, p. 84). Isto nos dá nada menos de 87 linhas por número, um artigo vetado a cada dois números, uma foto a cada três um desenho ou charge a cada seis edições. Muito menos, portanto, que a imprensa alternativa, como Opinião ou Movimento. Claro, parte da explicação para a diferença reside no tipo de material que se pretendia publicar, no fato de que Veja era uma revista de ampla cobertura e não exclusivamente política. 

Finalmente, em alguns casos, a censura foi total, isto é, muitas edições foram simplesmente apreendidas; além disto, revistas e jornais poderiam ser retirados de circulação permanentemente, ainda que o mais comum tenha sido fechar as portas devido às conseqüências financeiras da censura.

 

As pressões econômicas

A censura não foi a única forma de repressão aos órgãos de comunicação de massa que se opunham à ditadura. As pressões econômicas foram, igualmente, fundamentais. Niomar Muniz Sodré Bittencourt, proprietária do Correio da Manhã, no seu editorial "Retirada", no qual anunciou a sua decisão da abandonar o jornal, mencionou especificamente o boicote dos anúncios do setor público: "A publicidade do Estado, financiada pelos contribuintes, representando 36% do total do mercado publicitário, foi sonegada maciçamente a uma instituição com quase 70 anos de relevantes serviços (...)". 
Na sua indignação, Niomar Sodré limitou-se a mencionar um ponto eticamente fundamental: o Estado é financiado por contribuintes e os usurpadores do Estado brasileiro privatizaram a sua utilização. Premiavam, com o dinheiro do povo, o apoio político à ditadura, e puniam, também com o dinheiro do povo, aqueles que se opunham a ela. Opinião, graças à linha nacionalista que defendia, beneficiava-se com a publicidade da Petrobrás; entretanto, o acirramento da repressão resultou na suspensão total dos anúncios. Num país em que o Estado desempenha um papel econômico e financeiro fundamental, houve até efeitos secundários, isto é, empresas privadas que, diretamente coagidas ou simplesmente receosas da suspensão de negócios com o Estado, suspenderam a sua própria publicidade. Tal foi o caso da Editora José Olympio, que suspendeu o contrato de publicidade com Opinião porque aguardava um empréstimo do BNDE. Ofereceu-se, inclusive, para pagar o contrato já feito, mas não desejava que os anúncios saíssem publicados (5). 
Os jornalistas profissionais tendem a dar mais importância às pressões econômicas do que à censura aberta. Hélio Fernandes defende a tese de que houve uma mudança fundamental na composição da receita dos jornais, que passaram a depender menos das vendas e mais da publicidade. Isto os colocaria em posição débil nas negociações com os anunciantes, particularmente com o Estado (Marconi, 1980, pp. 167-9). Dines (1974), concordando com Marconi, enfatiza as pressões feitas por empresas privadas, grandes anunciantes, cujos interesses não poderiam ser contrariados. Hamilton Almeida Filho, coerentemente, considera que o fim da censura formal, durante o governo Geisel, não significou o fim da censura, já que as pressões econômicas produziam o mesmo efeito, debaixo de uma conveniente fachada democrática. Como Fernandes, ele acha que o crescimento dos jornais e a crescente dependência em relação aos anunciantes dá aos últimos um virtual poder de veto (Marconi, 1980, pp. 189-91). Parece claro que o próprio êxito comercial de muitos jornais, que passaram de pequenos produtores artesanais a grandes empresas capitalistas, criou limites ao que eles poderiam publicar. A experiência dos países capitalistas ocidentais ensina que há limites à liberdade de imprensa, mesmo em sistemas democráticos, derivados das pressões dos grandes anunciantes para restringir as críticas à indústria que eles representam (6). 
A censura propriamente dita afetou os jornais e revistas, em grande medida, através dos prejuízos econômicos, forçando-os a mudar a política, aceitar a censura prévia, ou fechar. Como bem expressou Mino Carta, a decisão de acatar a censura prévia foi, quase sempre, tomada a partir de critérios empresariais. 
As ameaças foram usadas com freqüência, tanto como parte das proibições quanto verbalmente, em pessoa ou pelo telefone. Muitos bilhetinhos especificavam as medidas punitivas que seriam tomadas caso não fossem obedecidas as determinações da Censura. Os exemplos são muitos: o coronel Antonio Lepiane advertiu Veja, em 7/5/74, "sob pena de apreensão e de aplicação das medidas legais cabíveis". Em 21/2/74, o general Bandeira advertiu o O Estado de São Paulo para "não mais divulgar ‘versinhos’ (...) ou haverá apreensão". Em 18/3/71, se proibia divulgar uma entrevista do general Albuquerque Lima, críticas ao AI-5, "qualquer contestação ao regime" etc., culminando com a ameaça: "Qualquer violação o jornal será apreendido e os demais retirados do ar". Péssimo Português à parte, este tipo de ameaça foi freqüente. Villas Boas Correa afirma que o general Hugo Abreu, chefe da Casa Militar do governo Geisel, ameaçou a Folha de São Paulo com suspensão "por 30 dias, mais 30 são 60 e depois fecho por tempo indeterminado" (7). A arbitrariedade e a prepotência transparecem no uso da primeira pessoa do singular! 

Os bilhetinhos da censura e a visão harmônica do Estado

Muitas teses dedutivistas, que procuraram explicar a ditadura e o seu funcionamento, viram na censura uma simples necessidade decorrente da aceleração da acumulação de capital. A censura e as demais formas da repressão seriam instrumentos de implementação de uma política econômica, socialmente injusta. A esquerda dedutivista (isto é, que não pesquisa) e a doutrina oficial do governo militar coincidem nesta explicação. A primeira afirmava ser a repressão absolutamente necessária à intensificação da extração de mais-valia e a segunda afirmava ser a segurança (corretamente interpretada como repressão pela primeira) necessária para o desenvolvimento. A censura, capítulo particular do fenômeno mais geral - a repressão - teria a mesma função. Entretanto, a leitura dos temas cuja divulgação foi proibida reservava surpresas ao leitor: a principal delas é que as proibições de tratar da política econômica, assim como das reações a ela - greves e manifestações operárias - foram pouco freqüentes e pouco enfatizadas. 
Classificamos as proibições em quatro categorias, de acordo com o conteúdo do que era proibido: proteção do Estado, problemas sociais, problemas econômicos e outros. 



Em todos os anos, a proteção do Estado foi conteúdo da maioria absoluta das proibições: em 1970, todas as 27 proibições visaram à proteção do Estado, que respondeu por 91% das proibições em 1971; 90% em 1972; 82% em 1973; 88% em 1974; 84% em 1975-76 e 83% em 1977-78 (8). A proteção do Estado incluía várias subcategorias: 
a) Atividades repressivas: prisões, estouro de aparelhos, tortura, morte de opositores e a própria censura. Esta foi a subcategoria mais significativa durante o período, juntamente com a que proibia a divulgação de atividades da oposição: 228 de 639 proibições feitas entre 1970 e 1978, ou 36%. Houve variações anuais: 28% das notícias proibidas em 1970 e 27% em 1971, subindo a um nível mais alto nos anos posteriores: 49%, 47%, 44%. Entre 1975 e 1978, 52% das proibições versaram sobre a repressão. Este resultado coincide com a análise de Boccanera (1978), que demonstrou que "as atividades policiais" foram a categoria mais freqüente das proibições, sendo que, no seu estudo, atividades da censura ocupavam uma categoria à parte.
b) As atividades da oposição foram outra categoria fundamental, responsável por 230 das proibições, ou 36%. Destas, 71 referiam-se a atividades violentas (sabotagem, guerrilhas, assalto a bancos, sequestros políticos, assassinatos de militares e civis associados com a repressão etc.). Mais freqüentes ainda foram as proibições de divulgar as atividades não-violentas (manifestos, discursos, declarações, denúncias, editoriais etc.) no Brasil: houve 127 proibições a respeito delas, e mais 32 outras que se referiam a atividades semelhantes, mas no exterior. 
c) Os problemas internos do regime tampouco podiam ser tornados públicos: o povo brasileiro não podia tomar conhecimento de demissões, dissenções, nomeações conflitivas, problemas sucessórios, nem de casos de corrupção militar. Houve 79 proibições neste sentido. As três análises realizadas por Boccanera, Dines e Gaspari chegaram a conclusões semelhantes. As quatro categorias mais freqüentes de Boccanera foram atividades policiais, política interna, política internacional e subversão. Segue-se a Igreja Católica, entendida como as notícias a respeito da oposição da Igreja (ou de setores dela) à ditadura que foram censurados e não, simplesmente, os temas religiosos. A categoria seguinte, por ordem de freqüência, era censura às autoridades, seguida pela imprensa. Para Gaspari, as atividades do aparelho de segurança e a sucessão deMédici foram os temas mais importantes. A categoria mais freqüente no estudo de Dines foi "o terrorismo", com 9%; depois, "oposição política", juntamente com "problemas econômicos", com 8% cada uma, seguidas por "prisioneiros políticos", "tortura" e "atividade estudantis".

d) Os problemas sociais, abundantes no Pais, não eram de livre publicação. Encontramos 38 proibições relacionadas com problemas sociais, das quais 26 em 1974 Entretanto, numericamente, eles foram pouco importantes (9). 

e) Os problemas econômicos não constituíram o calcanhar de Aquiles da ditadura, que se ufanava de um milagre econômico. Houve, não obstante, 34 proibições,13 sobre assuntos econômicos em geral e 21 sobre a oposição à política econômica do governo; ou seja, somente 5% das proibições trataram da economia. Alberto Dines (1975)por sua vez, concluiu que somente 8% das proibições referiam-se a assuntos econômicos. Boccanera (1978) classificou as proibições em 14 categorias e, por ordem de freqüência, a que tratava de assuntos econômicos estava no oitavo lugar. Vinte e quatro das 34 proibições "econômicas" que analisei foram impostas nos anos de 1973 e 1974. 

f) As proibições que não se encaixam nas categorias acima formaram uma categoria residual, com um total de 30. 

 



A censura foi, principalmente, um instrumento de proteção autoritária do próprio Estado. Ela procurou esconder o autoritarismo de forma autoritária, assim como as resistências a ele. Durante a ditadura de Garrastazu Médici, mais de 80% do conteúdo das mensagens foram classificadas na categoria de "defesa do Estado autoritário": proibição da divulgação de notícias sobre a repressão, inclusive torturas, prisões, estouro de aparelhos, cassações, notícias sobre a própria censura, sobre a organização da comunidade de segurança, sobre as dissenções no interior do Estado, particularmente as militares, assim como sobre a oposição ao Estado autoritário, fosse ela violenta ou não. Algumas pessoas foram definidas como "inimigas do Estado" e nada, absolutamente nada a respeito delas deveria atingir o público. Entre os "inimigos do Estado", o mais notório foi Dom Hélder Câmara, mas outras pessoas, como o seu colaborador, o padre Jentel, como Lysâneas Maciel e Francisco Pinto foram também censurados. No rádio na televisão, a censura atingiu sistematicamente vários artistas cuja oposição à ditadura era conhecida, entre eles Chico Buarque e Geraldo Vandré. A preocupação dos Estados autoritários em ocultar o seu próprio autoritarismo e manter uma aparência democrática é comum. 
Logo no início do governo Geisel, houve uma pequena redução na participação do item "proteção do Estado autoritário" sobre o total das proibições, mas, em 1975 e 1976, a percentagem voltou a subir. Houve, a partir de 1975, uma grande redução no número de proibições, em conseqüência da distenção. Houve, também, um crescimento na participação das proibições sobre movimentos sociais e de oposição à política econômica. Isto se explica, até certo ponto, pelos efeitos do aumento dos preços do petróleo e pelos primeiros sintomas do fim do milagre. 
O estudo das proibições permite reiterar que a ditadura não foi integrada nem harmônica. O Estado era (e continua a ser, durante a Nova República) composto por diferentes setores com grau variável de autonomia. Alguns, como o SNI, com muita autonomia. Embora o Estado autoritário procurasse legitimar-se através de altas taxas de crescimento econômico, o aparelho político e repressivo do Estado autoritário era quase independente dos órgãos formuladores da política econômica. Um discurso do ministro Delfim Netto foi censurado e somente foi publicado depois dos necessários telefonemas através dos canais competentes. O aparelho repressivo do Estado preocupava-se com ele mesmo e com a própria imagem. Entretanto, muitas teses interpretam as proibições como um instrumento a mais, entre os muitos que o regime utilizou, para impôr uma política concentradora de renda, visando manter ou acelerar a acumulação de capital. Elas pecam por partir de uma visão unificada do Estado, segundo a qual as instituições públicas agem em harmonia e de acordo com princípios comuns. Os dados mostram que as proibições, originárias, em sua maioria, nos órgãos militares de inteligência, visavam à proteção do Estado autoritário; outras, originadas em numerosos minicentros de poder, obedeciam a interesses menores, locais e, até mesmo, pessoais das autoridades coatoras. A expectativa de uma grande coerência por parte do Estado e, por extensão, da Censura gerou uma perplexidade da parte de muitos analistas e observadores, muitos dos quais chegaram à conclusão de que a censura "não tinha lógica" (10). Para outros, como Carlos Chagas e Alberto Dines, ambos jornalistas com experiência direta com a censura, a multiplicidade de fontes de poder, em níveis muito diferentes, roubava ao conjunto das proibições a consistência que poderiam ter se emanassem de um centro só (11). 

Outros tipos de censura
A Escuta Telefônica 
A censura telefônica operou com um objetivo oposto ao da censura dos meios de comunicação de massa: não se tratava de impedir que certas informações chegassem aos brasileiros, mas de obter dos brasileiros informações que eles não queriam dar. A censura telefônica, objetivava obter informação. O número de chamadas telefônicas transcendeu, de longe, a possibilidade de escuta por parte do Estado; conseqüentemente, algumas pessoas, telefones e chamadas foram censurados, mas a vasta maioria não. 
Como estudar o funcionamento da censura telefônica, numa situação em que tais informações eram, elas próprias, censuradas? Usei duas soluções: entrevistei, formal e informalmente, pessoas que trabalhavam na Censura e, principalmente, pessoas que tinham trabalhado nela e troquei informações com outros pesquisadores. No caso, uma entrevista feita com Walder de Góes, talvez o jornalista que mais pesquisou a censura e a repressão, foi a mais útil. Um tipo de informação que foi pouco útil e, às vezes, até contraproducente foi a dada pelos próprios censurados. Eles sabiam pouco sobre a Censura. Além disto, ser censurado dava status nos grupos da oposição, e o número dos que se proclamavam censurados excedia, de muito, o dos efetivamente censurados.
A expansão do autoritarismo e do totalitarismo, observada a partir do AI-5 e até o fim do governo Médici, gerou o problema de monitorar um número crescente de "suspeitos" sem perder a vigilância mais severa sobre os considerados perigosos e mais relevantes. O totalitarismo, ao incluir mais e mais áreas de atividade humana sob a tutela do Estado, multiplicou necessariamente o número de suspeitos, criando para os órgãos de segurança o problema de como tratar com grandes números. A solução que a ditadura encontrou era previsível: estratificou o universo das vítimas em categorias, reservando para cada uma delas recursos humanos e materiais de acordo com a sua relevância. Em Brasília, por exemplo, o sistema da escuta telefônica funcionava da seguinte maneira: 
a) Havia um número grande de telefones grampeados e gravados, de pessoas e instituições de menor importância. O seu número elevado impedia que elas fossem ouvidas em detalhe por pessoal qualificado. Eram, portanto, ouvidas por pessoal pouco qualificado e de pouco discernimento, treinados para marcar as gravações que contivessem determinados nomes de pessoas-chave ( ex.: Lamarca, Lysâneas Maciel, Ulysses Guimarães, Francisco Pinto, Hélder Câmara, Luiz Carlos Prestes, Fidel Castro etc.) ou temas-chave ( ex.: eleição presidencial, comunismo, Cuba, Chile etc.). Feita esta primeira triagem, militares e funcionários de graduação média (capitães, majores) ouviam as gravações selecionadas, fazendo nova triagem. Os casos suspeitos eram levados à apreciação do diretor que, durante o período pesquisado, era o general Castro.
b) Um pequeno número de "privilegiados", estimados, em 1977, em 80 a 100 somente em Brasília, tinha as suas conversas telefônicas ouvidas in totum, independentemente de nomes, palavras-chave etc., por pessoal mais qualificado. Não sei quem estava nesta lista, mas a oposição quase inteira dizia estar nela. 
O pessoal de mais alto nível da Segurança Nacional dispunha de aparelhagem decodificadora de sons, mas não os ministros de Estado e seus assessores; as varreduras eram muito mais freqüentes nos escritórios e residências dos primeiros, além do que, alguns ministros de Estado e muitos dos seus assessores integraram a lista dos censurados. A organização e a distribuição de material, serviços e pessoal da censura telefônica revelam as prioridades da Segurança Nacional, assim como os seus conflitos. Os serviços de informação serviam, prioritariamente, a si mesmos, relutantemente prestando serviços a outros órgãos do governo, e assim mesmo de qualidade inferior. A autonomia dos órgãos de segurança em relação ao Estado refletia-se no fato de grampear os telefones de autoridades civis e militares de cuja lealdade desconfiavam.

A censura a diferentes tipos de produção artística e literária

A censura artística e literária afetou, predominantemente, a produção nacional e, dentro dela, a de cunho político. A indústria cinematográfica, assim como as novelas de televisão, passaram quase incólumes, sendo poucas as exceções. Entretanto, isto se deve à autocensura. A Rede Globo manteve um departamento de censura para evitar as pesadas perdas econômicas que resultariam da censura de uma novela. Mesmo assim, tiveram uma novela censurada. A censura. foi um pouco mais dura com as peças de teatro e com os livros "suspeitos": 34% dos que foram examinados em 1976 foram censurados. 

 

 

 

Essas diferenças refletem muitas coisas: em primeiro lugar, há um problema de amostragem, porque todas as peças de teatro e de rádio, assim como todos os filmes, eram examinados antes de liberados para o público, o que não se aplicava aos livros, uma vez que o número de livros publicados anualmente no Brasil é um múltiplo de 219. Este total refere-se aos livros levados à atenção da Divisão de Censura como "suspeitos" e, conseqüentemente, com maior probabilidade de serem censurados do que uma amostra aleatória dos livros publicados.

 

O contexto interpessoal da censura.

A censura não tem lugar num vácuo de relações humanas. Há contatos pessoais entre censores e censurados. Quando há censores "residentes", o contato é permanente. Há contatos no nível de diretores e proprietários de jornais e revistas, por um lado, e ministros ou comandantes de exércitos, por outro Os Mesquita, do O Estado de São Paulo, conheciam Buzaid, ministro da Justiça, e haviam conspirado com várias altas patentes militares para depor Goulart; algumas dessas altas patentes passaram a ter posições de importância na ditadura, inclusive a Presidência. Os Mesquita negociaram o abrandamento da censura com Falcão, almoçando na residência deste. 
Os jornalistas são quase unânimes em afirmar que os primeiros contatos feitos com oficiais das Forças Armadas foram, dentro das circunstâncias, surpreendentemente bons. Foram civilizados, de nível razoável, a despeito dos limites impostos pela situação, na qual uns detêm poder e o usam para infringir o que os outros consideram um direito natural. A substituição dos oficiais regulares das Forças Armadas por oficiais ligados aos órgãos de segurança e por policiais foi quase sempre descrita como desastrosa: redução no nível educacional e incremento no nível da agressão e da violência. 
Muitos jornalistas e administradores de jornais e revistas acharam, como muitos outros civis, que contatos interpessoais com os militares e com as autoridades civis encarregadas da censura abririam certas possibilidades de negociação. Dotados de maior conhecimento, em geral, e sobre a imprensa em particular, acreditavam poder convencer e cooptar os censores É provável que isto tenha acontecido muitas vezes, mas somente se a pessoa contatada fosse a responsável pela censura. E isto não se sabia. Poucos se deram conta de que a vantagem cognitiva era mais do que compensada pela desvantagem no poder. A negociação era extremamente difícil, nessas circunstâncias, porque os coatores podiam prescindir dela e os jornais não. Os coatores negociavam com o que tiraram dos jornais. Acenavam com a devolução do que foi roubado, com o objetivo de obter ganhos. Cláudio Abramo tinha claro este ângulo, que passava quase sempre desapercebido: 
"(...) jamais sofri pressões diretas, mesmo por que eu tomo a cautela de não conhecer os membros do sistema. Não os conheço, então fica muito difícil sofrer pressões (...) Agora, se você é uma pessoa a quem certos organismos têm acesso fácilse você almoça com membros do governo ou do sistema de segurança, informações e contra-informações, se os freqüenta, fica mais fácil eles telefonarem exercendo pressões" (Marconi, 1980, p. 178) . 
O que era visto por muitos como acesso ao sistema, que poderia facilitar as negociações e pressões sobre o sistema, era percebido por Abramo como uma abertura que facilitava pressões do sistema. Note-se que as negociações também significavam obter por bem o que as proibições obtinham por mal. Além disto, muitas autoridades fizeram, constantemente, pressões para que os jornais publicassem notícias de seu interesse (12). 
Assim, as relações interpessoais entre censores e censurados variaram muito, de almoços, jantares, visitas domésticas, conversas agradáveis, troca de pontos de vista, papos telefônicostroca de presentes, por um lado, a gritos, ameaças, empurrões, discussões, violência, murros, prisão e tortura, por outro. 
Mas a censura não afetou apenas as relações entre censores e censurados. Ela afetou profundamente as relações entre jornalistas, proprietários e administradores. Era inevitável. Eu tive alguns artigos censurados e sempre me ficou a pergunta sobre se o jornal estava multiplicando a censura, por medo. Publiquei, numa revista especializada em Ciência Política, com poucos leitores, um artigo técnico sobre a subrepresentação, no Legislativo, de alguns estados e a super-representação de outros. A revista avisava na contracapa, como é habitual, que não se responsabilizava pelas opiniões dos autores: Os diretores acharam necessário agregar uma nota da Redação, ao pé da primeira página do meu artigo, afirmando não endossar as opiniões nele expressas. Na minha perspectiva, uma ruptura desnecessária e aética de uma tradição acadêmica; na de outros, uma precaução necessária. Ficaram ressentimentos. 
Na imprensa, como em outras áreas, alguns usaram a difícil posição política de outros para resolver disputas pessoais e profissionais. As delações e denúncias constituíram a forma mais comum de iniciar processos repressivos. Vários jornalistas interpretam a sua saída de um determinado órgão como um sacrifício político visando aliviar a censura e as pressões econômicas; outros como uma solução para rivalidades pessoais e profissionais. Entretanto, também há demissões quando não há censura: Como saber quais .as demissões politicamente motivadas? Como distinguir aquelas nas quais a repressão política foi usada para justificar demissões que se deveram a outras causas? Melhor ainda, em que proporção cada um destes fatores influenciou a demissão em cada caso? É impossível saber. O que se pode provar, estatisticamente, é que os jornalistas que combateram ativamente a ditadura tiveram menor estabilidade no emprego. 
Os conflitos pessoais, as perseguições reais e as simples paranóias deixaram ressentimentos permanentes que, embora não pesquisados pela alienadíssima Ciência Política tradicional, influenciaram e continuam a influenciar, de maneira drástica, a vida de muitos.

A organização e a burocratização da Censura

Como toda atividade que se aplica a um amplo território, tratando de um grande número de casos, a Censura cresceu, organizou-se e burocratizou-se. Devido à cortina de ferro a respeito das suas atividades, pouco se sabia, do lado de fora, a respeito do seu modus operandi, da sua organização e dos seus problemas. Entretanto, alguns estudiosos, em sua maioria jornalistas afetados diretamente pelas atividades da Censura, realizaram um verdadeiro trabalho de detetive político-científico, nos dando uma idéia a respeito do funcionamento daquela. Gerou-se, assim, uma situação típica de Estados autoritários: do lado de dentro, formou-se uma organização burocratizada de âmbito nacional, com os eternos problemas de pessoal, financiamento etc. derivados da extensão totalitária do aparelho do Estado, que incluía mais e mais áreas de atividade sob a regulamentação da Censura; do lado de fora, o povo brasileiro, intencionalmente transformado em massa desinformada, era afetado duramente por uma instituição cuja organização, cuja razão de ser e cujos problemas ele desconhecia. Foi somente depois da abertura que este capítulo infeliz da ditadura pôde ser estudado e passou ser um pouco mais conhecido.
Como resultado da expansão totalitária, cresceu o corpo técnico de censores, estimado por Rita Maria Lira, em meados da década de 70, em 400 no País como um todo. A Censura era; essencialmente, federal e concentrava a quase totalidade das suas atividades em Brasília. Os técnicos tinham curso universitário em uma de cinco carreiras: Direito, Filosofia, Sociologia, Comunicação Social e Psicologia; além disso, freqüentavam um curso de especialização, cuja duração era de três a seis meses, na Academia Nacional de Polícia, em Brasília. Em um determinado momento, passaram a exigir a aprovação em uma bateria de testes psicológicos, o que levou à reprovação de 21 técnicos e 8 fiscais, que recorreram à Justiça, em 1976. Este episódio reacendeu o interesse por pesquisar a Censura e abriu alguns caminhos para fazê-lo. 
A jurisdição da Divisão de Censura incluía outras áreas, como a dos costumes e diversões que, em 1976, cancelou o registro de várias organizações como, por exemplo, o da Sociedade Arrecadadora de Direitos Autorais e Musicais do Brasil (Sadamb), o da Sociedade Interestadual de Compositores e Autores Musicais Brasileiros (Sicambra) e da Sociedade Brasileira de Autores e Compositores Músicos (Sobracom). 
A Divisão de Censura, contrariamente ao mito, não era uma entidade política: os órgãos de segurança agiam através dela, mas ela não exercia atividades de censura política diretamente. Esta separação entre a censura política e a censura moral, no âmbito "dos costumes e diversões", era de se esperar, considerando a natureza tão diversa destas duas áreas de atividade humana. Entretanto, se, para a maioria dos seres humanos sensatos, essas eram duas áreas separadas, para algumas pessoas a decadência moral obedecia a um projeto político de inspiração comunista. Essa visão paranóica seria irrelevante se alguns dos que a esposavam não fossem política e militarmente importantes. O general Milton Tavares de Souza afirmou, em 1976, que "o movimento hippie foi criado em Moscou e, se os pais não orientarem cuidadosamente a juventude, o comunismo acabará dominando o Brasil" (Jornal do Brasil, 3/10/76, p. 30). O tenente- coronel Carlos de Oliveira, segundo o Jornal do Brasil. (19/11/73), afirmou que "a mais abominável tática - dos comunistas - é a da disseminação das drogas (...)" E o importante general Belfort Bethlem, que chegou a ser comandante do III Exército e ministro do Exército, afirmou ao Jornal do Brasil (15/6/77, p. 17) que "existe um fundo ideológico no tráfico de tóxicos no país, através do interesse dos comunistas em corromper as mentes jovens e destruí-las". Esta pequena seleção de um número grande de citações publicadas por Marconi ilustra que muitos membros importantes do estabelecimento militar ligavam questões de moral pessoal, particularmente sexual, a um projeto comunista de dominação. Essa opinião era compartilhada por vários civis de extrema direita, como José Bonifácio de Andrada, líder do governo na Câmara, e Guido Mondim, senador da Arena pelo Rio Grande do Sul. Este, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, justificando o seu voto a favor da censura prévia, discorreu sobre a decadência moral do mundo ocidental, particularmente a França, e afirmou que o "desfibramento do homem, a sua destruição pela imoralidade, obedece a plano internacional". 

Onde se originavam as proibições?
Vários autores deduziram, pelo conteúdo dos bilhetinhos, que a censura política estava nas mãos dos militares, o que é correto. Os bilhetinhos continham informação muito atualizada sobre os operativos antiguerrilha, proporcionando, freqüentemente, informações que os jornalistas não tinham, o que sugere que a proibição vinha de círculos militares muito bem informados. O passo seguinte consistia em estabelecer quais eram as instituições, dentro do aparelho militar; que estavam encarregadas da censura política. 
Não há resposta única para esta questão. Em alguns períodos, particularmente durante o governo Médici, houve um predomínio do SNI. Houve, também, claras variações geográficas no grau de influência de diferentes instituições militares ou paramilitares: Estas variações entre governos e entre diferentes regiões administrativo-militares mostram que a ditadura não era monolítica. A jurisdição da Censura, da Informação e da Segurança nunca foi ponto pacífico, sendo freqüentes os conflitos entre os serviços de informação, particularmente entre o CIEX e o SNI. Uma pesquisa efetuada por Walder de Góes confirma que a Censura era uma jurisdição disputada. 
A relação entre o Ministério da Justiça e o SNI funcionava nas duas direções: o Ministério entregava ao SNI os materiais considerados suspeitos e o SNI entregava ao Ministério os trabalhos considerados perigosos, para que fossem censurados. Assim, muitas proibições foram comunicadas pelo Ministério da Justiça através dos seus órgãos, mas as decisões foram tomadas pelo SNI e, secundariamente, por outros órgãos militares. 
Numa burocracia hierarquizada e unificada, servindo a um partido ou a uma instituição com diretrizes ideológicas integradas, a origem de proibições do mesmo tipo seria sempre a mesma. Entretanto, isto não aconteceu com a censura, por várias razões. Em primeiro lugar, porque seu locus não correspondia ao locus real. Formalmente, toda a censura era jurisdição do Departamento da Polícia Federal, órgão do governo civil; de fato, a censura política provinha, majoritariamente, dos órgãos militares de segurança. Em segundo lugar, porque não havia um controle eficiente sobre a repressão, inclusive sobre a censura, sendo que diferentes autoridades outorgaram-se, ocasionalmente, o direito de censurar. Em terceiro lugar, porque as autoridades da Censura não assumiam a responsabilidade por ela. 
O Ministério da Justiça tentou recuperar parte da autoridade da censura política - que, de fato, estava nas mãos dos militares - através da criação da SIGAB. O resultado não foi uma transferência, mas uma adição. O organograma da Censura refletiu o que se passava no Estado autoritário em geral: a multiplicação de linhas de autoridade. A existência de três armas, com alto grau de autonomia de ação, já garantia a multiplicidade; a este conceito setorial, há que agregar as diferentes jurisdições baseadas na geografia (os quatro exércitos e as regiões militares). Algumas destas subdivisões agiam com relativa autonomia. Às subdivisões geográficas é necessário acrescentar a grande divisão entre os ramos das Forças Armadas e o SNI. Como a censura não estava regulamentada e o Estado não era de lei, censurava quem queria e tinha poder para fazê-lo, "legalmente" ou não. O presidente da República, o ministro da Justiça, o ministro do Exército, o diretor-geral do Departamento da Polícia Federal, os comandantes dos exércitos, os comandantes das regiões militares, entre outros, sentiram-se autorizados a enviar suas próprias proibições aos meios de comunicação de massa. Entretanto, ocasionalmente, funcionários subalternos também sentiram-se no direito de adicionar as suas proibições. A multiplicação de centros de poder implicou a multiplicação da origem das proibições. Os centros conviviam bem, censurando de maneira quase independente, já que não havia instituição dentro do Estado dedicada à manutenção da ordem legal, ou a coibir os excessos, os abusos do poder. Os problemas apareciam somente quando os interesses dos diferentes grupos com poder colidiam; havendo vários casos em que um centro censurou notícias cuja divulgação era de interesse de outro. 
A multiplicidade de pontos de origem fez com que, por um lado, houvesse muitos casos de censura dos quais altas figuras da hierarquia discordavam e, por outro lado, que elas pudessem passar a responsabilidade pela censura para subalternos. Ruy Mesquita contou, em entrevista a Magda Magalhães Alves, que Buzaid repetidas vezes declarou, em conversa pessoal, que esta censura era absurda e que o censor era "um estúpido". Mesquita menciona outro caso: em almoço na casa do ministro Falcão, ele comentou a censura ao editorial econômico do O Estado de São Pauto: se proibia falar em recessão. Esta ordem; segundo Falcão, chegou ao conhecimento de Geisel, que teria ficado irritado, já que o censor teria sido a primeira pessoa a falar em recessão no governo dele. Falcão não sabia, ou dizia não saber, quem havia dado a ordem. Conclui Mesquita: "daí se vê a bagunça que é, não há critérios, não há nada" (Marconi, 1980, p. 173). 
A incompetência na administração da própria Censura agregou variações geográficas ao que poderia ser publicado. Um número da revista Opinião, que deveria circular em abril de 1973, foi apreendido. A rádio Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, a Folha de São Paulo e os meios de comunicação de massa na Bahia receberam proibições a respeito no dia 15. A decisão de censurar evidentemente originou-se em Brasília. Entretanto, a incompetência, a pouca seriedade no processo de transmissão desta proibição de Brasília aos órgãos regionais da Censura gerou três proibições diferentes: a Folha ficou proibida de publicar "qualquer notícia ou comentário sobre a apreensão do semanário Opinião e a prisão dos seus diretores, além de qualquer declaração atribuída aos mesmos". Já na Bahia; "poderá ser noticiada a apreensão do semanário Opinião. Entretanto, a detenção dos diretores bem como críticas ou protestos não são permitidas. Igualmente quaisquer declarações dos diretores daquele semanário não podem ser divulgadas". No Rio de Janeiro, se permitia a notícia da apreensão, se proibia a publicação das declarações dos diretores e não se mencionava qualquer proibição de comentários à respeito (Marconi, 1980, p. 253). 
A arbitrariedade foi facilitada pela inexistência, em muitos casos, de clara identificação da autoridade censurante, ponto documentado por Marconi (1975), que analisou 308 proibições enviadas aos meios de comunicação em Salvador entre janeiro de 1970 e setembro de 1974. A origem da autoridade coatora foi omitida da maioria dos casos. Em 1970, 47% das proibições não explicitavam a autoridade coatora; em 1971, a porcentagem aumentou para 63%; em 1972, atingiu 81%; em 1973, 98% e, finalmente, em 1974, 100%! A censura, inicialmente feita em papel timbrado, com clara indicação da autoridade censurante, passou a ser feita através de mecanismos cada vez mais informais, com bilhetes em papel não timbrado, às vezes à mão, e, finalmente, telefonicamente. 

As conseqüências da censura

Qual o impacto real da censura sobre a tiragem? Vários semanários fecharam explicitamente devido à censura, seja por iniciativa própria, seja pela proibição de circular, seja devido aos prejuízos econômicos dela decorrentes. Alguns diários de circulação razoável e de amplo escopo, como o Correio da Manhã, foram vítimas de invasões, depredações, pressões econômicas, prisões de seus editores e proprietários, e acabaram fechando. Há, entretanto, um problema de multicolinearidade. Também há fechamentos durante períodos democráticos, devido à má administração financeira. Assim, é difícil saber até que ponto um jornal fechou devido à censura, e até que ponto fechou devido a problemas administrativos e financeiros independentes da censura e da pressão política (13). 
A atuação da Censura não se reduz a negar ao público o direito de se informar onde queira e a negar aos autores o direito de divulgação. A censura afetou a circulação dos órgãos censurados (14). Inicialmente, pareceu sugestiva a hipótese de que ela teria um efeito negativo sobre a tiragem dos jornais e revistas censurados. Este argumento, porém, foi rebatido frontalmente pelos que acreditavam que a população reagiria à censura e passaria a comprar, sistematicamente, os jornais e revistas censurados, aumentando, assim, a circulação. 
A censura não teve o mesmo efeito sobre tipos diferentes de jornais e revistas, afetando uns relativamente pouco e condenando outros ao fechamento. Os veículos tipicamente políticos, que concentravam a sua atenção, opinião e noticiário sobre temas políticos, dependiam da liberdade de imprensa em grau muito maior do que os grandes diários, que apresentavam aos seus leitores uma ampla gama de opções: anúncios, esportes, literatura, diversões, ciência etc. O impacto sobre aqueles que se concentravam na política foi muito forte e vários saíram de circulação em conseqüência, em maior ou menor medida, da censura. O Pasquim, Opinião, Politika e outros foram fortemente atingidos. Em contraste, ODia A Notícia, tratando infreqüente e superficialmente de temas políticos, tiveram a sua vida pouco afetada. Assimo Pasquim que, em novembro de 1970, atingira 200 mil exemplares, terminou fechando. A Tribuna da Imprensa,que tinha uma tiragem de 50 a 60 mil exemplares - algumas edições extraordinárias atingiram 300 mil exemplares -, após dez anos de censuras e apreensões de números inteiros teve a sua tiragem reduzida a 6-7 mil exemplares (declarações de Hélio Fernandes; em Marconi, 1980, pp. 81-2). 
Os grandes diários, como O Estado de São Paulo Jornal do Brasil, ainda que operassem com censores "residentes" durante muito tempo, tiveram a sua circulação pouco afetada, a despeito da censura férrea sobre o seu conteúdo, particularmente durante o governo Garrastazu Médici. Estes jornais atraíam uma grande variedade de leitores; poucos os compravam e liam exclusivamente devido ao seu conteúdo político. Mesmo os leitores mais interessados na política podiam satisfazer a sua necessidade de informação e de opinião sobre muitos outros aspectos; assim, continuaram a comprar e a ler esses jornais, a despeito da censura política. Alguns jornalistas chegaram a estimar que o efeito da censura sobre publicações de interesse amplo foi positivo: Mino Carta, na época editor de Veja, afirmou que a revista "deve muito, em circulação e prestígio, à censura. O Estado conseguiu simpatias que não teria" (Regis, 1978). Ruy Mesquita concordou: "Do ponto de vista promocional foi ótimo. Nunca o nosso jornal foi tão divulgado no exterior. (...) Eu, que era pichado de reacionário, virei herói de estudante, como exemplo de luta pela democracia. Nestes períodos os democratas sempre se aliam com a esquerda radical. Nunca recebi tanta família de presos políticos. Agora estou voltando a ser considerado reacionário novamente" (Regis, 1978). Daí que a conseqüência da censura sobre a circulação dos jornais tenha de ser qualificada: atingiu muito mais os periódicos essencialmen te políticos, radicalmente opostos ao regime, do que os periódicos de amplo escopo. Algumas revistas, colocadas sob censura prévia, simplesmente deixaram de circular por opção dos seus responsáveis. Por exemplo: Inéditos, uma revista cultural publicada em Minas Gerais, foi notificada, em 29 de dezembro de 1976, que seria submetida à censura prévia e.seus diretores preferiram suspender a sua publicação; da mesma forma,Paralelo, uma revista gaúcha, deixou de circular, assim como Debate e Crítica, Bondinho, Mais 1. Extra Realidade Brasileira, EX etc. (Marconi, 1980, pp. 61 e 73). Já alguns diários e semanários de amplo escopo, segundo os seus editores, foram beneficiados.

A autocensura.

Entretanto, não é só a censura prévia que pode ter tido um impacto sobre a tiragem: a autocensura, derivada de receios vários, como o da prisão, ou o fechamento do jornal, ou o fim dos empréstimos e financiamentos, também pode ter influenciado essa tiragem. Esses receios podem ter sido provocados por ameaças abertas, veladas - pelo acontecido com as publicações submetidas à censura prévia -, pelo clima geral de insegurança etc. Podemos classificar a autocensura em dois tipos bem diferentes: um, institucional, através do qual jornais, revistas, estações de televisão etc. aceitaram explicitamente a responsabilidade pela divulgação do que publicavam, de acordo com as orientações distribuídas pela Censura. Ao fazê-lo, as instituições livravam-se da incômoda presença dos censores residentes e da onerosa prática de submeter todo o material publicado à censura prévia; ao aceitá-la, contudo, transformavam-se em executoras e cúmplices da Censura, das quais as principais vítimas eram elas próprias. A autocensura transformou-se em prática tão arraigada e institucionalizada que decorria de acordos e conversações. 
Entretanto, devido ao caos reinante na estrutura de poder e autoridade do Estado ditatorial, o acordo celebrado com uma dependência do Estado com freqüência era violado por outra. No dia 24 de agosto de 1972, numa operação típica da impunidade e da irresponsabilidade do governo Médici, elementos que chegaram em 12 viaturas policiais invadiram a Redação do O Estado de São Paulo àprocura de notícias sobre a sucessão do ditador, que seriam publicadas no dia seguinte. Como a notícia era falsa, nada encontraram. Este incidente levou O Estado de São Paulo a rejeitar a autocensura. 
A autocensura institucional foi a forma mais comum de controle da opinião pública. A TV Globo manteve um grupo interno de censura, contratando um ex-diretor da Divisão de Censura e Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal e outro que havia dirigido órgão equivalente no então Estado da Guanabara, além do necessário pessoal auxiliar. Ou seja, arcou, integralmente, com o ônus financeiro desta censura interna, sob a justificativa de que este ônus seria inferior aos custos de produção de programas, particularmente de novelas, cuja censura seria evitada. O primado da rationale econômica, que exclui qualquer consideração ética, fez com que a TV Globo censurasse os seus próprios telespectadores e ainda arcasse com o ônus da operação, ilustrando o efeito multiplicador da censura. 
O outro tipo refere-se à autocensura individual a que, em grau maior ou menor, todos os brasileiros nos submetemos. Muitos não expressamos, em público, opiniões "perigosas" que pudessem provocar uma violência, uma demissão, uma prisão arbitrária. No jornalismo, nos sindicatos, nas universidades, em qualquer área, os brasileiros experimentaram o medo e a opressão e, em grau maior ou menor, policiaram as suas próprias atividades de acordo com o ideário da ditadura. Chegar ao Brasil, vindo de uma democracia, era encontrar um silêncio contrastante. 
A autocensura afetou, de maneira indelével, os meios de comunicação de massa. Como as regras não eram claras e o sistema era arbitrário, desigual e incoerente, nunca se sabia com exatidão o que era permitido ou não. A área cinza, duvidosa, era muito grande, gerando uma devastadora incerteza. Muitos optaram por recuar, limitando as suas atividades a áreas politicamente irrelevantes, seguras. Mas o caráter totalitário da ditadura engoliu mais e mais áreas de atividade humana para dentro da esfera de segurança, e o espaço seguro e incontroverso diminuiu sempre. A ditadura totalitária terminava perseguindo os que psicologicamente fugiam dela, tentando evitar qualquer conflito, prenunciando-se o dia em que nada escaparia ao conceito patrifágico de Segurança Nacional. 

O tiro saiu pela culatra?

Obviamente, um dos objetivos centrais da censura era reduzir a oposição ao regime militar. O alvo era a população letrada, no caso da imprensa escrita, e a população total, no caso do rádio e da televisão. Cumprir ou não este objetivo passava pelos meios de comunicação de massa. A interferência com estes meios levou a reações negativas e, neste sentido, pode ter trazido mais malefícios do que benefícios para o regime militar. 
A primeira conseqüência negativa foi alienar jornais e revistas que haviam apoiado o golpe militar. O Estado de São Paulo e a Folha da Tarde, publicados pela família Mesquita, haviam apoiado o golpe contra Goulart e muitas das medidas da ditadura. Durante os últimos meses da administração Goulart, a campanha do Estadão foi intensa. Esta posição contrasta com o telegrama, enviado em 1972 por Ruy Mesquita ao então ministro da Justiça, o integralista Alfredo Buzaid, acusando-o de reduzir o Brasil a uma Uganda (liderada, na época, por Idi Amin Dada) ou uma república de bananas (Dassin, 1978, p. 174). O Correio da Manhã, que havia publicado fortes editoriais contra Goulart (ver "Basta!" e "Fora!"), contribuindo para mobilizar apoio popular para a sua queda, acabou invadido, e a sua diretora presa. 
Entretanto, o argumento de que foi a censura que alienou a imprensa antes favorável ao regime militar é incompleto. Alguns órgãos, grupos, instituições e classes desejavam o fim do governo Goulart por considerá-lo ineficiente e por temerem o comunismo. O projeto deles era de um golpe que afastasse Goulart e seus seguidores, retornando o poder em breve tempo à sociedade civil. O projeto da linha dura militar, que não se sabe se existia antes do golpe ou se foi formulado com o desenrolar dos acontecimentos, divergia consideravelmente do comportamento tradicional de "dar o golpe e devolver o poder aos civis" desejado, por exemplo, pelo Estadão. Apergunta a ser respondida é se estes setores continuariam a apoiar o governo militar, se não houvesse censura, a partir do momento em que ficou clara a sua vocação militar e autoritária. Aoposição da imprensa ao AI-5, dois anos antes da censura prévia, foi forte, mas não uniforme. 
A violência da repressão, inclusive da censura, gerou inimigos acérrimos onde antes havia simplesmente opositores. A censura contribuiu para subtrair informações específicas do conhecimento da população, mas o custo foi aumentar substancialmente a oposição ao regime militar. 

O destino dos leitores e o problema da solidariedade

O que aconteceu com os leitores dos jornais e revistas censurados? O que aconteceu com os leitores do Correioda Manhã? De Potitika? De Opinião? Há duas hipóteses opostas: a) eles pararam de ler; b) eles mudaram de jornal, contribuindo para o crescimento da tiragem dos jornais não censurados, que seriam beneficiados pela censura aos demais. 
Estes dois modelos têm conseqüências muito diferentes. No primeiro, sofrem todos e ninguém se beneficia; no segundo, alguns ganham às custas dos que perdem: há transferências de leitores e de recursos. Algumas características das comunicações num Estado autoritário sugerem que um modelo que soma zero, no qual o ganho de um se faz às custas da perda de outros, é mais adequado à análise de muitos processos. A possibilidade de ganhar eleitores de outros jornais e revistas, e de eliminar órgãos competidores; pode ter afetado o comportamento de alguns órgãos de comunicação de massa, impedindo a formação de uma frente unida de jornais, revistas e estações de rádio e televisão, que teria limitado os graus de liberdade da ditadura, obrigando-a a escolher entre o fim da censura e a imposição da censura total, a qual acarretaria a perda de apoio político de vários setores, inclusive militares. A relação entre a intensidade da repressão e o apoio político-militar que as ditaduras recebem pode ser descrita por uma pirâmide cuja altura equivale à intensidade e à violência da repressão, e cuja largura é o apoio político-militar, que sempre é maior para as medidas repressivas mais brandas e menor para as mais violentas e radicais. A largura da pirâmide na base, a sua altura máxima (a partir da qual o apoio é zero) e os ângulos variam com a população que se estuda. Assim, uma frente unida firme contra a censura forçaria ou o seu abandono ou o aumento da repressão contra os órgãos de comunicação e a imposição de formas extremas e violentas de censura, cujo preço seria a perda de apoio, inclusive militar, ao regime. Entretanto, a ausência de uniformidade de posições, a competitividade entre os jornais e cadeias de televisão e rádio, assim como um ambiente muito competitivo e conflitivo entre os profissionais da área impediram a uniformidade e reduziram as manifestações de solidariedade a um mínimo. Cada jornal, cada estação e, até mesmo, cada indivíduo adotou uma posição e uma política próprias. Isto criou uma imprensa "boa" outra "má", descaracterizando a repressão, que deixou de ser vista como indiscriminada e passou a ser vista como seletiva. Quando todos os jornais, revistas etc. enfrentam a censura e a repressão, ou eles estão errados ou o regime repressivo está errado; entretanto, quando somente alguns enfrentam a censura, o erro é creditado à "má" imprensa, ficando a repressão exonerada de culpa. A participação de órgãos insuspeitos (leia-se conservadores), como o O Estado de São Paulo, na campanha contra a censura foi importantíssima, porque retirou o debate do eixo esquerda radical-democracia; infelizmente, igualmente importante foi a cumplicidade de outros órgãos insuspeitos, como a cadeia Globo. 
Os incentivos ao colaboracionismo não derivaram exclusivamente de eliminar possíveis perdas: houve ganhos. Os anúncios das empresas estatais deslocaram-se da imprensa "má" para a "boa"; as concessões de canais foram retiradas das estações "más" e dadas às "boas"; os empréstimos negados às "más" foram oferecidos às "boas" etc. Não houve somente punição para os órgãos que resistiram à ditadura; houve, também, incentivos para os que colaboraram com ela. E alguns não resistiram a esta combinação. 
Se, por um lado, jornais economicamente liberais e politicamente conservadores, mas democráticos, como O Estado de São Paulo, se insurgiram contra a censura e ajudaram a solapar o apoio político-militar da ditadura, outros, como a Rede Globo, foram acusados de colaborar, crescer e enriquecer às custas da decapitação de órgãos da imprensa, cujo cepo teriam ajudado a segurar. 
O oportunismo e a falta de princípio democrático, até certo ponto surpreendente, de pessoas, grupos e instituições da sociedade civil, dispostos a transigir com a repressão e a censura, e a aproveitar-se delas, assustam mais do que a presença de grupos repressivos e totalitários no Estado. Creio que poucos esperavam um comportamento exemplarmente democrático das Forças Armadas, mas é amedrontadora a conivência, ativa ou passiva, por parte de setores da sociedade civil, com a repressão aos seus próprios pares, particularmente quando vinda de setores cuja função precípua supõe o princípio democrático. 

Questões mais amplas: a censura como parte de um fenômeno mais geral 
Os adeptos da Doutrina de Segurança Nacional tendem a justificar a censura como medida desagradável mas necessária a uma situação de enfrentamento armado, usando a guerrilha do Araguaia como demonstração da existência de luta armada e como justificativa. Entretanto, a guerrilha do Araguaia começou, cronologicamente, em 1972 e terminou em 1974; boa parte da legislação de repressão aos meios de comunicação de massa é anterior ao início da guerrilha. Além disto, já em 1970 houve, aproximadamente, 27 bilhetinhos, crescendo o seu número a partir de então. Assim, não é possível explicar o aparecimento nem o crescimento da censura pela luta armada, particularmente a do Araguaia. 
É mais fácil explicar o aparecimento e o crescimento da censura pela ascensão ao poder, no interior do regime militar, de grupos com vocação e ideologia extremamente autoritárias, sem qualquer compromisso com a democracia. No meu entender, este período iria desde o AI-5, em dezembro de 1968, até o início do governo Geisel, quando outro grupo, com vocação menos autoritária e com um compromisso com a democracia, ainda que nominal e distante, assumiu o poder. 
Caso isto seja verdade, é possível uma periodização da repressão, que se refletiria em muitas áreas de atividade humana ou, para seguir o jargão sociológico, em muitos indicadores. Selecionei, além do número de proibições, o número de desaparecidos, tal qual publicado em Brasil: Nunca Mais. Suponho que o número real de desaparecidos seja maior que o relatado, mas que os erros sejam aleatórios, tanto no que tange aos bilhetes, quanto no que tange aos desaparecidos.









A inspeção visual da Figura 3, que projeta, simultaneamente, os desaparecidos e as proibições, mostra que, compensando as diferenças nas escalas dos fenômenos (um com centenas de casos por ano e outro com dezenas), as duas curvas ajustam-se de maneira surpreendente. Eu esperava uma certa tendência ao crescimento durante o governo Garrastazu Médici, mas não poderia supor uma colinearidade tão extrema. 
Isto nos estimula a pensar a censura como parte de um fenômeno autoritário e totalitário (15), crescendo e diminuindo com ele. Isto não implica abandonar a tese do Estado fragmentado, uma vez que não vejo evidência de um projeto repressivo, centralizado, coerente. Vejo uma tendência autoritária, que implica permissão antecipada ou, pelo menos, conivência por omissão em relação à repressão. A idéia de que militares e paramilitares estavam livres para oprimir aumentou a probabilidade de atos repressivos por autores os mais diversos em todo o País. O modelo teórico do projeto ideológico autoritário levado a cabo por um Estado integrado e centralizado me parece menos adequado do que modelos baseados na teoria das catástrofes, que procuram explicar como as taxas nacionais são muito mais fáceis de prever do que os autores individuais e que não requerem um Estado centralizado e coerente. Em verdade, a noção de que o Estado é um todo coerente não consegue explicar as incoerências no seu comportamento, que foram muitas. Ainda mais prejudicial é a idéia de que um aparelho ideológico, integrado e harmônico, devido à sua base comum de classe, se estende além do Estado. Esta visão conduz a esperar uma coerência que não existe e, portanto, a tratar os incontáveis "desvios" como anomalias e não como o resultado esperado em uma situação em que grupos e instituições têm interesses e ideologia próprios e um alto grau de autonomia para expressá-los. Nesta ótica extremada, a própria censura passa a ser algo difícil de explicar, já que tanto os meios privados de comunicação de massa quanto os vários órgãos do Estado são parte do mesmo aparelho ideológico. Sulamita Barbosa Assis (1987), em sua excelente tese de mestrado, foi, não obstante, levada a este beco sem saída, expresso na pergunta: "O que conduz o Estado a ter que policiar ‘seus’ aparelhos ideológicos?" Ao que responde: "a simples existência de um instituto como a censura à imprensa já mostra que as esferas repressiva e ideológica de um sistema de dominação nem sempre andam suficientemente sintonizadas, pelo menos não em conjunturas de crise política grave" (16).
A intensidade e a brutalidade da censura e de outras formas de controle de informação variam, e muito, mas a sua existência é universal. O suposto, errôneo, de que existe um aparelho ideológico do Estado, baseado na visão do Estado como harmônico e integrado, cujos tentáculos ideológicos incorporam até muitas instituições da sociedade civil, inclusive a imprensa, obriga os seus seguidores a tratar como anomalia aquilo que é um fenômeno universal, a censura (17). Aceitar que o Estado, particularmente o Estado contemporâneo, é fragmentado em instituições que têm interesses próprios, e que o grau de consistência ideológica entre eles e as instituições dominantes da sociedade civil é extremamente variável, faz do conflito "interno" e da inconsistência um fenômeno esperado e não uma anomalia. Se, por um lado, o modelo perde em elegância e simplicidade, por outro, ganha em acuidade e realismo. 
Trabalho apresentado ao XII Encontro Anual da Anpocs, Águas de São Pedro, SP, 25-28 de outubro de 1988.

 

NOTAS:

 

1 - Eliézer Rizzo de Oliveira (1976), entre outros, argumenta que, até o AI-2, o governo Castello Branco procurou legitimar-se através da constitucionalidade dos seus atos. O AI-2 alterou a Constituição, incluindo a "subversão da ordem", ainda que não violenta, entre os crimes e retirando do júri a competência para julgar os casos de abuso da imprensa (Costella, 1970, pp. 132-4). 

2 - Segundo Dines, esta foi uma decisão empresarial, na qual a ideologia política cedeu lugar a considerações financeiras.
3 - Informações prestadas por Walder de Góes, em comunicação pessoal, em 1984, e por ele apresentadas no XII Encontro Anual da Anpocs, Águas de São Pedro, SP, outubro de 1988.
4 - No voto da liderança, somente o líder do partido votava e seu voto valia por todos os membros do partido. Era parte essencial da legislação que impunha a fidelidade partidária. 

5 - Isto implica que a censura deve ser analisada no contexto de um Estado economicamente intervencionista. Estas pressões seriam menos eficientes num Estado economicamente liberal.

6 - Entretanto, afirmar que os grandes anunciantes têm poder ilimitado simplifica uma legalidade complexa. Retirar a publicidade de uma grande empresa jornalística ou de televisão significa não atingir o público servido pelo jornal ou estação de televisão, uma decisão que pode ser comercialmente desastrosa para a empresa anunciante. 
7 - Ver Marconi, 1980, p. 67. A Lei de Segurança Nacional, de 1969, dispunha que, em caso de propaganda subversiva, se o responsável fosse diretor de periódico, além das penalidades sobre o autor, o juiz poderia suspender a circulação por 30 dias e o ministro da Justiça, igualmente, decretar a suspensão e o cancelamento do registro. O fato de que Hugo de Abreu tenha usado a primeira pessoa do singular mostra que ele, como tantos outros dentro do aparelho militar, considerava o processo legal uma formalidade dispensável. 
8 - Todas as cifras devem ser tomadas com reservas, porque as fontes são incompletas. Usamos as de Marconi e as do "Livro negro" do Jornaldo Brasil. O O Estado de São Paulo, infelizmente, só começou a compilá-las em março de 1973. 

9 - Isto contraria a posição de Barbosa Assis (1987, p. 103), que vê um crescimento, durante o regime Médici"do interesse em manter como estavam os padrões de acumulação” 

10 - Vejam o título de um artigo publicado no "Folhetim" da Folhade São Paulo: "A Censura Não Tinha Lógica". Alguns outros trabalhos tinham o mesmo teor.
11 - Ver o artigo de Carlos Chagas, "Jornalista Depõe na Censura", Estado de Minas, 17/05/1979, e Dines (1974, p. 140). 
12 - Este é um ponto freqüentemente esquecido nas análises da censura. Ainda que a censura, quase sempre, seja negativa, istoé, procure proibir a divulgação de alguma notícia, há tentativas de forçar a publicação de notícias favoráveis ao governo e às autoridades coatoras, que vão desde notícias de alto nível de abstração, ideológicas, até notícias de tipo social e pessoal. 

13 - Evidentemente, durante os períodos democráticos, sem censura, também há jornais que fecham, por razões diversas, como má administração, competição de outros jornais e de outros tipos de mídia etc., criando um problema de multicolinearidade. Miceli (1986) demonstrou que a participação dos jornais na receita provinda dos anúncios decaiu muito durante o período, devido ao crescimento da televisão. Há indicações, também, de que o Correio da Manhã já se encontrava em séria situação financeira. Evidentemente, os prejuízos derivados da censura, das invasões e depredações contribuíram para o seu fechamento.

14 - Como estudar este problema? Poderíamos começar analisando a tiragem média de cada publicação, durante e depois da censura. Esse método supõe que a tiragem seria estável, sem qualquer tendência, seja a crescer ou a decrescer, no período livre. Uma maneira mais sofisticada de analisar os mesmos dados consistiria em projetar, por interpolação, a tiragem durante o período anterior ao da censura, contrastando a tiragem efetiva com a que seria de esperar se as tendências se mantivessem e não houvesse censura: Este método não supõe que a tiragem seja estável, mas suspõe que à tiragem do período censurado seguiria as mesmas tendências observadas durante o período prévio à censura. Isto pode ser feito de várias maneiras: a mais simples supõe uma extensão linear e aditiva das tendências anteriores, ou seja, calcula-se o aumento médio (semanal ou mensal, por exemplo) do período anterior, calculando, então, qual seria a tiragem, computanto o mesmo aumento (ou diminuição, se for o caso). Entretanto, há muitos processos sociais que seguem modelos não-lineares; conseqüentemente, conviria verificar se alguns dos modelos alternativos (funções de poder, exponenciais etc.) oferecem melhores resultados do que os lineares e aditivos. Evidentemente, como o período durante o qual houve censura fornece, de acordo com a nossa hipótese, dados alterados pela própria censura, ele não serve para avaliar o método mais adequado para o período normal, sem censura. Conseqüentemente, teremos que avaliar os diferentes métodos pela sua capacidade em prever a tiragem de períodos anteriores à censura, utilizando dados ainda mais antigos. O modelo que se revelar mais adequado para explicar o período anterior à Censura deverá, então, ser usado para estimar a tiragem como ela seria sem a censura. A diferença entre a tiragem efetiva e a estimada constituiria a melhor estimativa do efeito da censura. 
15 - Entendo por autoritarismo a forma de exercício do poder político e por totalitarismo, a extensão das atividades humanas reguladas e dirigidas pelo poder político. 
16 - A autora ampliou os seus comentários: "(...) o discurso estatal é um discurso fragmentado, segmentar, quando não são vários discursos - e isto, em função da multiplicidade de interesses do próprio Estado. Pois a aliança de poder firmada sob Médici foi o próprio retrato desta diversidade de demandas que obrigou o governo a desdobrar sua mensagem em vários itens" (Barbosa Assis, 1987, pp. 10 e 137). 
17 - A visão do Estado e dos seus aparelhos ideológicos como um conjunto integrado não impediu a autora de, pesquisando a realidade, descobrir um Estado que não se integra com os seus aparelhos ideológicos, ou um Estado que está, internamente, dividido, nem mesmo de reconhecer a existência de profundas divergências entre os militares. 

 

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