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CUBA: A SOCIEDADE APÓS MEIO SÉCULO DE MUDANÇAS, CONQUISTAS E CONTRATEMPOS








RESUMO
A vitória revolucionária de 1959 transformou a estrutura econômica e social, assim como as concepções e o imaginário do povo cubano. Trata-se de uma história que conta já com meio século, na qual a mobilidade e o caráter contraditório das conjunturas, por meio de fatores externos e internos, dão contexto a conquistas e contratempos, e que incidiu de maneira muito complexa na sociedade cubana de hoje. A resistência do projeto cubano contra a hegemonia imperial que caracteriza esse meio século tomou por surpresa os centros de poder mundial quando a sociedade cubana optou por um rumo socialista nos anos 1960; voltou a surpreender com o alcance de suas estratégias de solidariedade, prolongada e decisiva na luta contra o apartheid nas duas décadas seguintes; e finalmente ao se manter em pé após os efeitos da queda mundial do socialismo. E demonstrou, o tempo todo, que resistir é possível e necessário.

Palavras chave: Mudança social, Cuba, Legitimidade, Participação, Reforma, Resistência, Revolução, Socialismo, Sociedade cubana, Solidariedade, Sustentabilidade.

A revolução que chegou ao poder em janeiro de 1959 significaria uma transformação da sociedade cubana em tal magnitude que teria sido praticamente impossível prefigurar no contorno de um programa político, por mais profundas que fossem, as reformas que esse apresentasse, como foram no programa do Moncada (Fidel Castro, "La historia me absolverá", 1953). Uma magnitude inimaginável até mesmo para o próprio líder que a conduziu desde o início e que deixou uma marca inconfundível para o futuro. Assim ficou registrado numa eloquente expressão de sua autoria: "Fizemos uma revolução maior que nós mesmos".
O programa político nunca pôde ultrapassar o enunciado das propostas. A história real implica muito mais: implica as travas externas, as limitações internas, as frustrações, os acertos, os erros, as opções e alternativas, os atos de heroísmo, a resistência, todos encadeados numa espécie de espiral que modifica os seres humanos que vivemos nela, de geração em geração, de conjuntura em conjuntura. Por meio dela se tece progressivamente todo o complexo das relações sociais, sua dimensão estrutural, sua institucionalização, os padrões morais, as militâncias, a religiosidade, o imaginário popular, a criatividade e todas as redes contidas naquilo que de maneira mais genérica caracterizamos como o social. Nunca seguindo uma lógica linear, senão um devir carregado de contradições.
O contraditório está no próprio cerne, como vislumbraram aqueles que deram ao socialismo um sustento científico e que retornaram sem cessar a essa figuração dialética hegeliana da contradição. O contraditório sempre esteve e sempre estará, de uma forma ou de outra, e não como princípio doutrinal, mas como realidade já descoberta e muitas vezes verificada. É o que demonstra o meio século do processo cubano que nos cabe esboçar, carregado de conquistas e descalabros, de êxitos e fracassos, de regozijos e pesares, da fundação de novos valores e de lastros do mundo ante o qual nos rebelamos.  
Em Cuba, a referência marxista foi incorporada depois que o povo descobriu que seus clamores haviam chegado ao poder; que a nação - que o regime republicano nascido à sombra da intervenção do império americano não tinha podido lhe dar - não só era uma possibilidade, como o povo mesmo havia começado a fazê-la real.
Os líderes recorreram às massas desde o início para que suas iniciativas não ficassem na esfera das decisões elitistas. Embora a simplicidade da estrutura de governo se valesse do decreto, a mudança social não era decidida sem recorrer ao consenso popular mais amplo. A sociedade cubana teve rapidamente provas incontestáveis do alcance social do projeto implementado. A reforma agrária, que desapropriava o latifúndio, foi assinada quatro meses após a vitória, e, poucos meses depois, a distribuição de terras seria efetivada. Uma mobilização maciça de camponeses até Havana na primeira celebração do assalto ao Moncada, no dia 26 de julho de 1959, acabaria com as esperanças da oligarquia latifundiária de opor resistência à decisão de repartir a terra entre os camponeses explorados, dedicados a trabalhá-la.
A partir daquele momento, o recurso da mobilização das massas em torno dos dirigentes se converteu no mais persistente para a manifestação do consenso. Dessa forma, um novo tipo de relação social começou a se impor, e a ganhar uma incidência na transformação da estrutura de classe da sociedade cubana. Além da reforma agrária, foram adotadas outras iniciativas orientadas a avançar nos assuntos de justiça social e equidade, na eliminação da pobreza, na redução da desigualdade, no alívio das pressões do hábitat, primeiro por meio da redução do valor dos aluguéis e, depois, da supressão da usura e do mercado imobiliário.
Entre 1959 e 1963, ocorreriam a nacionalização do sistema bancário, da indústria e do comércio, uma mudança de denominação da moeda com limite de acumulação e uma segunda lei agrária, que reduzia também a extensão da propriedade da terra. Ao reformar a estrutura econômica, reformava-se o conjunto das relações sociais. Com a socialização da quase totalidade da economia por via da propriedade estatal, mudava-se totalmente a fisionomia da sociedade. E com ela o tipo de relações com os órgãos de poder político, que já não responderiam a interesses oligárquicos de caráter privado. A transformação estrutural da sociedade cubana se produziu muito rapidamente.  
Aquela gigantesca cabeça governamental que supunha a criação de ministérios concebidos para administrar a totalidade do espectro econômico era dirigida por uma estrutura exclusiva e simples: o Conselho de Ministros. Contudo, avançou-se, não sem dificuldades, para a unificação política em um partido que não havia dirigido a luta revolucionária, mas se formava com a vitória, a partir dos movimentos e organizações que o tinham feito. E cuja missão, em relação ao Estado, não seria muito definida até dez anos depois. Surgia, ao mesmo tempo, uma nova institucionalização, a qual se enraizou com a força do consenso na sociedade civil cubana: novas organizações de massas, como os Comitês de Defesa da Revolução, a Federação de Mulheres Cubanas, a Associação Nacional de Pequenos Agricultores, que não substituíram a outra, cuja legitimidade foi revitalizada na mudança social, mas que dariam um novo sentido à participação popular.
O poder revolucionário afrontou o objetivo de eliminar o analfabetismo adulto da população no período reduzido do ano 1961. Nesse mesmo ano, Cuba foi invadida por um exército mercenário armado e treinado nos Estados Unidos, e enfrentava levantamentos contrarrevolucionários que se prolongaram durante muitos anos. Desde 1962, assumiu-se um sistema único de educação, público, laico e gratuito. O mesmo caráter público e gratuito foi acordado para o sistema de saúde em 1965. Não se pensou em esperar que o sistema, que acabava de ser criado sob o assédio econômico, diplomático e até militar dos Estados Unidos, tornasse financiáveis as profundas reformas sociais, e essas foram adotadas e traduzidas num consenso contínuo, que atravessou praticamente sem trégua a escassez de alimentos, de roupas e de outras necessidades básicas que desde os anos 1960 começou a se sentir.
Para os níveis de parametrização hegemônica norte-americana, essa capacidade de resistência de uma sociedade constituída em Estado, insignificante em termos geopolíticos, ante as regras de dominação e subsistência impostas, foi a primeira das três surpresas que o caso cubano faria a Washington. Os cubanos descobriram que a soberania tinha uma natureza tangível, além da Constituição, das instituições do Estado e dos símbolos da pátria, e que havia que defendê-la na prática toda vez que alguém a colocasse em perigo.
Vários fatores iriam erodir, a partir desse momento, o cenário da nova relação social. O efeito migratório - marcado no começo do período ao que nos referimos pelo deslocamento de poder imposto pela revolução - começou a mudar no final da década, por motivações vinculadas às condições e ao estilo de vida que uma austeridade estendida impunha, a despeito dos benefícios em resposta às urgências de equidade e à justiça social e do resgate da soberania nacional. Washington não perdeu tempo em manipular a pressão migratória cubana para alimentar a imagem de uma sociedade dividida. A partir desse momento, a opção de migrar aparecerá como uma mistura de atração (para aqueles que perdiam a esperança) e de ameaça (para a estabilidade da sociedade que se construía na ilha), com uma política preferencial que premiava com privilégios os cubanos que imigravam por via legal, oposta à política aplicada para o resto dos imigrantes latino-americanos.
Resulta, pois, impossível esboçar um quadro completo da sociedade cubana sem levar em consideração a existência de um enclave migratório, especialmente nos Estados Unidos, que em pouco tempo começa a ter incidência econômica, e também como imagem de diferença de bem-estar, pelo dispositivo das remessas familiares (que é semelhante à caracterização genérica da explosão migratória atual, mas que no caso cubano é manipulada). Apesar disso, a comunidade emigrada é um fenômeno que não apresenta hoje uma uniformidade opositora, embora predominem as faixas que exprimem o conflito com o processo cubano; não contamos com espaço para nos deter aqui nas dinâmicas, mas tampouco podemos omitir que essa comunidade emigrada constitui um componente problemático na análise da sociedade cubana de hoje. É sabido que as explosões migratórias vividas não se detiveram depois da primeira década, elas ficaram marcadas com força com a saída maciça no porto de Mariel em 1980, e novamente com a chamada "crise dos balseiros" em 1994. Na atualidade, o sistema cubano está longe de poder consolidar um quadro de incentivo em contrapeso às motivações migratórias.
Tampouco é possível ignorar que na década de 1960 houve um crescimento demográfico que levou a população de Cuba, de pouco mais de seis milhões de habitantes em 1959, a dez milhões, aproximadamente, em 1970. O crescimento nos seguintes quarenta anos foi, contudo, de só mais um milhão. De modo que, se nas décadas de 1970 e 1980 podíamos falar de uma sociedade majoritariamente jovem, o envelhecimento populacional se acentuou entre a década final do século passado e a primeira do presente, graças à combinação de uma queda constante da taxa de natalidade e a um aumento da expectativa de vida.
A entrada na segunda década da experiência socialista cubana deixou a sociedade diante da evidência do fracasso macroeconômico. Mesmo que a errática decisão de acabar com a pequena iniciativa privada (a "ofensiva revolucionária" de 1968) tentasse achar justificativas no imaginário revolucionário da época, o fracasso da safra das dez milhões de toneladas de açúcar (1970) era um signo inconfundível de que as estratégias seguidas na década anterior não podiam ser mantidas, ao menos sob o bloqueio. Este trabalho não tem o intuito de estudar a economia da época, mas seria superficial desconhecer o peso do econômico no conjunto do fenômeno social.
O projeto socialista cubano tinha vivido sua primeira grande frustração: não poderia se articular no sistema-mundo com a independência a que aspirava preservar. Causas exógenas? Devemos reconhecer que (houve) em alguma medida, pois o assédio para evitar a sobrevivência não deu trégua. Porém, faltaram muitas outras coisas: referências de modelos alternativos, capital profissional (esse que agora temos em abundância), imaginação, talvez. Não poderia dizer quantas coisas faltaram. Sobraram, com certeza, outras tantas, como a confusão em torno do alcance do exercício da vontade, por mais bem-intencionada e justa que fosse. A precisão da decisão política, avalizada pelo consenso, nem sempre pode se impor à exigência e aos limites dos mecanismos: aos de mercado, por exemplo.
Devemos precisar aqui que, com a decisão de se incorporar ao Conselho de Ajuda Mútua Econômica (Came) - o chamado "bloco do leste", ou o "sistema soviético" (para usar termos que aludem a diversas arestas da recontextualização social) -, o cubano se vê confrontado com um esquema de valores parcialmente modificado. O seu socialismo continua a significar o domínio da economia pelo Estado, os sócios do além-mar são os que desde a década precedente estenderam a mão e os porta-estandartes do projeto socialista nascido da revolução bolchevique, seus inimigos externos não moderam a hostilidade; a soberania conseguida não se vê ameaçada pela nova forma de dependência, mesmo que essa implique custos, às vezes lacerantes e lamentáveis em mais de um sentido, de uniformização do pensamento. Algo de discriminatório, e às vezes de repressivo, se impôs no plano ideológico.
Precisaríamos analisar muitas nuanças para detalhar o que se perdia e o que se ganhava naquele momento, mas interessa-nos agora ver como ganhos e perdas se converteram em influências nas relações sociais que a aventura revolucionária da década de 1960 havia gerado. Na verdade, a economia socialista cubana conseguiu um espaço de inserção e um projeto de desenvolvimento que levou a melhorias nas condições de vida e, ao mesmo tempo, a um crescimento na escala macro. Certamente com custos muito elevados, que talvez não tenham sido contabilizados totalmente. O Partido Comunista de Cuba iniciou a sequência de congressos no mesmo estilo dos partidos nascidos da tradição marxista e a administração do Estado se institucionalizou com os órgãos de Poder Popular. O socialismo cubano criou finalmente uma Constituição, votada em referendo em 1976, depois de ter sobrevivido sem Constituição própria durante 17 anos.
A sociedade cubana viveu com mais folga que na década anterior, os índices de alimentação melhoraram, o desemprego se tornou insignificante, um mercado varejista de bens de consumo avançou, a ascensão de profissionais da saúde gerou a metáfora da "potência médica" para aludir às potencialidades de garantia assistencial e científica que se abriam e um leque de solidariedade civil para com países afligidos por catástrofes naturais ou simplesmente carentes de assistência, sujeitos a uma política de saúde deficitária. A proporção de médicos e enfermeiras atingida deu lugar ao surgimento, em meados da década de 1980, do "médico da família" como um novo nível assistencial, mais diretamente vinculado à comunidade.
Abstemo-nos aqui, reiteramos, de formular outras valorações sobre o sistema e a inserção econômica que propiciou essa melhoria na satisfação das necessidades básicas da sociedade cubana, pois ultrapassa o propósito do presente trabalho. E de nenhum modo porque acreditemos que tal melhoria se desenvolvia num contexto ideal. Devemos destacar, contudo, que o consumo diário per capita de quilocalorias e de proteínas passou a estar acima da norma de satisfação fixada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), na segunda metade da década de 1980; os 20% da população com renda mais alta ganhavam quatro vezes mais do que os 20% da população com a menor renda, e mais de três quartos das rendas provinham de salários do setor estadual, que era praticamente onipresente na economia do país.
A articulação do Programa Complexo do Came, do amparo da cláusula de "país mais favorecido", junto com o Vietnã e a Mongólia, propiciou um excedente de recursos que funcionou para criar um padrão de desenvolvimento e mudar as condições de vida da sociedade, até o momento do colapso.
A sociedade cubana havia regularizado suas relações e seu estilo de vida naquele contexto. Felizmente, não faltaram circunstâncias para impedir que esse estado de bem-estar, moderado, bastante equilibrado, bem merecido, se convertesse de vez no congestionamento de um modelo pela rotina. O ano de 1975 marcou o começo da operação de solidariedade mais significativa e dispendiosa em termos de esforço e vidas jamais protagonizada pela sociedade cubana. Em aproximadamente 12 anos cerca de 350 mil cubanos passaram por Angola, a maioria como combatentes, todos voluntários. À geração que estava na infância durante o triunfo da revolução coube a oportunidade de participar de uma façanha que acabou com o domínio do regime do apartheid, além de deixar assegurada a independência de Angola e da Namíbia. Aquela resultou ser a missão mais generosa e significativa em que o povo se envolveu entre os anos 1970 e 1980: a de contribuir decisivamente para impedir que a dominação do racismo se perpetuasse no continente africano. Pensamos que, para a experiência daquela geração, a oportunidade do heroísmo numa causa justa serviu também como antídoto ante um modelo que ameaçava gerar burocracia e rotina.
A vitória da revolução sandinista na Nicarágua também contribuiu, em outra escala, para que nós, cubanos, mantivéssemos o ânimo, de que precisávamos para confirmar que nossa resistência, em tão onerosas condições, não só era válida para a sobrevivência própria, como respondia, sobretudo, a um ideal altruísta que não tínhamos por que deixar que se extinguisse.
Cremos que essa deve ter sido a segunda surpresa que Washington recebeu do "caso cubano". Pois, quando ele imaginava vencida a estratégia de solidariedade combativa dos revolucionários de seu quintal, depois de ter controlado as marés revolucionárias na América do Sul e inaugurado uma era de ditaduras militares com o golpe de Estado no Chile (1973), Cuba reapareceria na África Subsaariana com toda a legitimidade que lhe outorgava o fato de responder à solicitação de governos estabelecidos (Angola, Moçambique, Etiópia). E nessa ocasião não havia mais remédio senão reconhecer o êxito de sua participação na missão emancipacionista e compartilhar com os cubanos a mesa de negociação com a qual o regime do apartheid chegava ao fim.
O começo da década de 1990 trouxe consigo a tragédia da desintegração do sistema socialista soviético. E com ela, a desconexão internacional e a queda econômica do subsistema cubano (se podemos chamá-lo assim) que, sem colocar todas na mesa, havia jogado as cartas de seu futuro para sua integração naquele complexo cenário cujo desabamento Ernesto Guevara já havia vaticinado na década de 1960. Talvez não tivesse outra opção, mas, além disso, por oposição às suspeitas de "Che" Guevara, até a década de 1980 em Cuba prevalecia uma leitura mais otimista sobre o sistema soviético. Leitura que confiava que os erros da economia eram corrigíveis, sem perceber que o fracasso em propiciar a transição política para o poder do povo iria se interpor no caminho da correção.
A dramática perspectiva que a década final do século XX abriu para Cuba, divisada por Fidel Castro quase um ano antes se desencadear, e batizada premonitoriamente como "período especial", traz consigo uma série de situações sucessivas na qual a sociedade padecerá os efeitos superpostos da derrubada e das medidas para enfrentá-la, e reconhecemos que nos colocamos entre os que consideram que os signos intermitentes de reanimação econômica do começo do novo século ainda não indicam uma superação. Isso significa que, das cinco décadas de projetos revolucionários que se passaram, as duas últimas têm sido vividas em crise pela sociedade cubana. A seguir, tentaremos sintetizar esse cenário, que vigora até o presente.


Quando falamos do impacto da derrubada socialista no processo cubano, nos referimos pontualmente a uma queda de 36% do PIB entre 1990 e 1993. A capacidade importadora da economia nacional caiu em 75%, e foi necessário utilizar 65% da disponibilidade monetária na importação de petróleo e de alimentos. A compra de alimentos em 1992 se reduziu à metade da de 1989. Sem entrar em outras vertentes da desconexão, focamos nossa atenção nos efeitos sobre as condições de vida: o consumo de quilocalorias diminuiu de 3 mil para 1,9 mil, e o de proteínas, de 80 para 50 gramas. Essa contração chegou a criar, nas regiões mais deprimidas do país, uma situação de desnutrição que, aliás, foi a base de transtornos de saúde.
Além disso, os cortes prolongados de energia foram frequentes, o transporte público e outros serviços se reduziram ao mínimo, a construção de moradias sofreu uma interrupção quase total - com o fundo habitacional precisando urgentemente de reparos - e aumentou a precariedade das condições de moradia; a infraestrutura hospitalar sofreu uma deterioração da qual não conseguiu se recuperar vinte anos depois. Isso para citar só os indicadores de deterioração das condições de vida que consideramos mais significativos.
Mas a caracterização dos efeitos sociais ficaria incompleta se não disséssemos que essa crise também teve uma dimensão espiritual para a sociedade cubana: uma crise de paradigma, de incerteza, de poder ou não poder prever o futuro (nem no plano existencial, nem no político), de não saber com certeza se continuaríamos a viver numa sociedade capaz de colocar metas e de se orientar com elas, capaz de cumpri-las ou de não cumpri-las, e de corrigir rumos.
Com o intuito de enfrentar a crise, foram adotadas reformas que introduziram elementos de mercado logo no início da década de 1990. Algumas dessas reformas foram conjunturais, outras, estruturais. Elas mostraram não formar parte de um plano articulado, embora servissem para conter a queda em meados da década. Mas não era possível falar, a rigor, de recuperação econômica, mesmo quando se iniciou a mudança no cenário regional latino-americano que propiciaria a Cuba uma nova perspectiva de integração. A mudança regional, na qual tampouco nos deteremos em detalhe, aponta um panorama de esperanças para a sociedade cubana, pelo qual esperou desde os anos 1960.
As reformas dos anos 1990 provocaram, contudo, uma ruptura do padrão de equidade que tinha se mantido até a década de 1980, que minimizava as diferenças de rendas familiares. Com a explosão da renda extrassalarial e a entrada de remessas, estima-se que essa proporção chegou a ser, no final da década de 1990, até 15 vezes maior entre os salários mais altos e os mais baixos.
O panorama atual coloca a sociedade em um ordenamento artificial que ganha forma na dupla circulação monetária, no abastecimento desigual, no desequilíbrio da pirâmide salarial, no subsídio do emprego estatal, na extensão de uma economia informal fora de controle e em muitas outras irregularidades. Essas distorções que vemos hoje no cenário socioeconômico cubano resumem os efeitos caóticos combinados da desconexão e da derrubada da economia, por um lado, e das medidas aplicadas para conter a queda, por outro. Sem deixar de lado os velhos efeitos combinados das limitações impostas pelo bloqueio e as geradas por desacertos administrativos: os velhos efeitos constituem um palco para os novos, e ambos se mantêm determinando contornos.
É evidente que algumas das iniciativas que serão tomadas agora, a partir do ano 2011, trarão a correção desejável, embora seja impossível afirmar a priori quais serão acertadas e quais deverão ser revistas. Da mesma maneira, tampouco podemos assegurar ainda que elas conseguirão se articular num projeto integral, nem como.
Novamente em Cuba nos vemos obrigados a repensar nossa transição socialista, e o desafio imediato e que mais define o socialismo cubano encontra-se, de novo, na economia. O dilema se define agora entre a transição de um socialismo fracassado para um socialismo viável, ou a transição para um capitalismo que amavelmente nos aconselham como realizável com "rosto humano". Sabemos que na agenda cubana prevaleceu e prevalece a primeira opção, mas que não se pense que nunca houve nessa sociedade motivações para o "rosto humano", nem que se trate de uma ideia fora de moda no país. Porque com o socialismo viável acontece o mesmo que com a democracia participativa: carece de referente concreto; de modo que todos, ou quase todos, queremos isso, mas não sabemos como será, nem por onde começar. Até agora temos mais clareza sobre o que faltou na experiência socialista do que sobre as propostas adequadas para refazê-la. Em qualquer caso, com "rosto humano", o futuro só poderá ser socialista, porque a lógica do capital acabará sempre engolindo qualquer empenho contínuo de justiça social, de amparo ante a pobreza, de fórmula social equitativa.
E a sociedade cubana, apesar dos dissabores e da austeridade na qual foi obrigada a subsistir, não perdeu os valores gerados e alimentados pelo horizonte de justiça e equidade. Isso é visível até hoje, de maneira paralela às expressões de deformação, nas sólidas manifestações de solidariedade de nosso povo, como na colaboração médica no Haiti. Poderíamos falar da colaboração médica cubana no mundo (entre as quais a oferta, recusada de maneira inescrupulosa, de enviar uma brigada a New Orleans para atender às vítimas do furacão Katrina em 2007). Ou na Bolívia, no Equador, na Venezuela, onde os agentes de saúde cubanos atendem com desvelo à população mais prejudicada e carente de recursos. Porém, aludimos agora, em 2010, ao Haiti, necessitado após dois anos de desastres (terremoto, furacão, epidemia de cólera), onde a cooperação solidária cubana é decisiva. Em descomunal desproporção sobre qualquer outra, se levarmos em consideração os indicadores macroeconômicos do país que oferece a ajuda. É uma solidariedade indicativa de valores que só uma sociedade que se libera, no sentido da liberdade, que não é o do liberalismo, pode atingir.


Não podemos deixar de pensar, para terminar, que a terceira surpresa que o "caso cubano" significou para Washington é, precisamente, que depois da queda do bloqueio do Leste, do sistema no qual a experiência socialista cubana havia achado sua tábua de salvação econômica, dos enormes efeitos materiais e espirituais da queda cubana e do recrudescimento do bloqueio dos Estados Unidos com a Lei Torricelli (1992) e a Lei Helms-Burton (1996), e suas sequelas orientadas a acelerar a esperada asfixia cubana, depois de tudo isso, a asfixia não ocorreu. Cuba, seu sistema político (carente de iniciativas que abram passo a uma participação mais efetiva), sua economia (mais desordenada e ineficiente que nunca, verdadeiramente necessitada de reformas), sua sociedade (carregada de penúrias, de desalento e incertezas), não perdeu os valores que a distinguem nem manifesta disposição para abandonar a utopia socialista.
A sociedade cubana não está disposta a perder o que conseguiu, começando por um sentido efetivo da soberania: na verdade, quer mais, porque não só aspira hoje à soberania que a resistência à hegemonia império-central colocou em suas mãos, senão àquela que a maturidade política lhe deu o direito de exercer e que ainda sente limitada, embora perceba com acerto que só dentro de uma variante plausível de socialismo poderá atingir.
 Havana, 17 de dezembro de 2010
Aurelio Alonso

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