Pixels ZN

TERIA SIDO A SERVIA ALVO DE UMA GUERRA PREMEDITADA EM 1999?

O ataque da OTAN contra a República Federal da Yugoslávia em 1999


Com início no dia 24 de março de 1999, foram 78 dias de desespero e muito sofrimento para todos os cidadãos sérvios. Foram dias que mudaram a vida de toda uma nação e que jamais serão esquecidos.
A pergunta que ainda perdura: Foi a Sérvia alvo de um ataque premeditado em 1999?
Para responder a essa pergunta, Milica Radojkovic-Hansel recorre aos documentos da época, incluindo uma carta de Willy Wimmer ao chanceler alemão Gerhard Shroder. Ele põe em evidência o caráter inadmissível das exigências de Rambouillet para justificar assim uma guerra já programada de antemão.

Há 14 anos – após as negociações de Rambouillet e de Paris, entre 6 e 23 de Fevereiro de 1999 – os PIGs - imprensa global - informaram o público que «a delegação sérvia não aceitou o acordo oferecido e que o qualificou de “nulo e inválido”».

Os PIGs insinuavam que o chamado Grupo de Contato para a Yugoslávia pretensamente apoiava aquele acordo. A dita comissão compunha-se de 4 países membros da OTAN mais a Rússia, mas, na realidade, a Rússia se recusou-se a aprovar a parte militar (anexo B) daquele acordo – um fato que foi escondido pela informação dos PIGs.
O que é que realmente se passou em Rambouillet e Paris, e quais eram os termos exatos do «anexo B»?
A secretária de Estado norte-americana daquela época, Madeleine Albright, afirmou que «a parte militar do acordo era praticamente o núcleo do acordo oferecido em Rambouillet», o qual era inaceitável para a delegação da República Federal da Yugoslávia.
Zivadin Jovanovic, o ministro yugoslavo das Relações Exteriores naquela altura, declarou a 6 de Fevereiro de 2013, em entrevista concedida ao diário de Belgrado Politika, que «em Rambouillet não houve nem tentativa de alcançar um acordo, nem de negociação, nem um acordo». A delegação yugoslava foi convidada para Rambouillet para que participasse em negociações com a delegação albanesa do Kosovo.
Parece certo que não houve efetivamente negociação. Pode chegar-se a essa conclusão através das diferentes posições expressas por alguns representantes ocidentais, como o então presidente da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE) e o ministro norueguês de Relações Exteriores.
A informação manipulada da imprensa internacional ocidental, e as afirmações também parciais dos políticos ocidentais, sobre «o fracasso das negociações como resultado da recusa do documento político exigindo uma ampla autonomia para o Kosovo» pelos representantes yugoslavos, visavam preparar a opinião pública para um ataque militar da OTAN, agressão já planificada para Outubro de 1998 mas, por razões evidentes, adiada para 24 de Março de 1999.
A única coisa verdadeira é que a delegação yugoslava pediu, repetidamente, para realizar – como ressalta das mensagens escritas transmitidas aos negociadores durante as conversações – negociações de forma direta entre as delegações yugoslava e Kosovar.  Os documentos oficiais provam este fato.
Christopher Hill, o representante dos Estados Unidos nessas conversações, afirmou na sua resposta aqueles pedidos que a delegação do Kosovo «não queria negociações diretas». «Assim ficava claro para todos nós que o diálogo direto não convinha aos americanos e que era essa a verdadeira razão pela qual o contato direto não teve lugar», declarou Yovanovic. E acrescentou: «Não é crível que, numa situação em que os americanos tivessem realmente desejado negociações diretas, a delegação do Kosovo não aceitasse esse pedido.»
Os meios de imprensa mundial e os representantes ocidentais dos interesses americanos divulgaram, conscientemente, uma má interpretação da suposta recusa da Yugoslávia para «a colocação de tropas para manter a paz no Kosovo (e Metoquia)».
Mas, o que são as «forças de manutenção de paz» na prática internacional e no direito internacional? 
Na prática internacional trata-se das tropas dirigidas pelas Nações Unidas (os chamados «capacetes azuis»), são tropas que os países membros da ONU põe à disposição dessa organização. Não são, pois, tropas da OTAN.

Para entender o que levou a República Federal da Yugoslávia a rechaçar a parte militar do documento apresentado em Rambouillet é necessário ler as suas disposições:

«(I) O pessoal da OTAN terá, tal como os seus veículos, navios, aviões e equipamento, de passagem livre e sem restrições assim como acesso total em toda a RFY (República Federal da Yugoslávia), incluindo o espaço aéreo, as águas territoriais associadas e todas as instalações;



(II) O pessoal da OTAN será dispensado, em todas as circunstancias e em qualquer momento, da jurisdição das Partes a respeito de qualquer agressão civil administrativa, criminal ou disciplinar que possam cometer na RFJ;

(III) O pessoal militar da OTAN terá normalmente que usar uniforme, poderá possuir e carregar uma arma;

(IV) As Partes deverão, em resposta a um simples pedido, fornecer todos os serviços de telecomunicações, incluindo os serviços de difusão, necessários para a Operação, tal como são definidos por parte da OTAN. Isto incluirá o direito a utilizar os meios e serviços necessários para garantir uma capacidade total de comunicação e o direito a utilizar para esse fim o espectro electromagnético de forma gratuita;

(V) Autoriza-se a OTAN a deter indivíduos e a entregá-los, tão rapidamente quanto seja possível, às autoridades interessadas.»

Os meios de informação da Europa, sobretudo os dos países membros da OTAN, e os representantes dos Estados Unidos e Europa esconderam o conteúdo deste documento militar, enquanto censuravam aos dirigentes sérvios e ao presidente yugoslavo «uma falta de cooperação com os esforços para encontrar uma solução pacífica». Tal como em Rambouillet, «a Conferência de Paris não foi uma reunião em que se tenha podido ver um “esforço” sério para chegar a um entendimento, negociações, ou um acordo». O enviado norte-americano Christopher Hill exigiu à delegação yugoslava que se limitasse a assinar o texto que ele mesmo tinha elaborado e colocado em cima da mesa, «segundo o princípio “Take it or leave it” [“Peguem ou larguem”]», explicou o ex-ministro Zivadin Jovanovic.
Além das numerosas críticas ao projeto de acordo, expressas por diversos peritos em direito internacional, a apreciação do documento pelo ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger, foi alvo de uma análise especial numa entrevista dada a 27 de Junho de 1999 ao Daily Telegraph de Londres. Kissinger declarou então:
«O texto do projeto de acordo de Rambouillet, que exigia o estacionamento de tropas da OTAN em toda a Yugoslávia, era uma provocação. Serviu de pretexto para começar os bombardeamentos. O documento de Rambouillet estava formulado de tal maneira que nenhum sérvio podia aceitá-lo.»
Estas palavras indicam, entre outras coisas, que o ataque de 1999 contra a República Federal da Yugoslávia foi apresentado nos meios de imprensa ocidentais como um epílogo, apesar de já estar prevista como o início da nova estratégia intervencionista da OTAN, sob a direção dos Estados Unidos. A introdução dessa estratégia deu-se oficialmente aquando da reunião da OTAN celebrada em Washington, a 25 de abril de 1999, ou seja na mesma altura em que se desenrolava o ataque contra a República Federal da Yugoslávia.
Com o ataque contra a Yugoslávia, a OTAN, que tinha sido una aliança defensiva, passou a ser uma aliança agressiva que se arroga o direito de intervir, como potência militar, em qualquer lugar do mundo. Por outro lado, a avaliação dos dirigentes yugoslavos, em relação à condução política oficial do país era correta, quando afirmavam que um dos objetivos deste ataque era criar um precedente para ações militares em todo o mundo sem mandato da ONU e em violação da Carta da ONU.
Esta opinião foi confirmada durante a conferência dos países membros da OTAN e de países candidatos à adesão, realizada em abril de 2000 em Bratislava. A conferência foi organizada pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos e o American Enterprise Institute (Instituto Americano para o Empreendedorismo) do Partido Republicano, apenas uns meses depois da agressão contra a República Federal da Yugoslávia. Entre os participantes estavam muitos altos funcionários (representantes governamentais assim como ministros das Relações Exteriores e da Defesa) dos países membros da OTAN e dos candidatos à adesão.
Os temas principais nesta conferência foram os Balcãs e o alargamento da OTAN. No seu resumo escrito sobre o encontro, documento datado de 2 de maio de 2000 e enviado ao chanceler alemão Gerhard Schroder, o então membro do Bundestag (Parlamento Al) e vice-presidente da Assembleia parlamentar da OSCE Willy Wimmer declarava que, segundo os Estados Unidos, o ataque da OTAN contra a República Federal da Yugoslávia constituía um precedente que poderá ser utilizado cada vez que houver necessidade.  É o que ele assinala quando escreve: «seguramente um precedente que cada qual poderá usar como referente, e que não deixará de o fazer». 
Wimmer explicava assim uma das conclusões fundamentais. Trata-se de uma confirmação, retroactiva, do facto que o verdadeiro objetivo das conversações de Rambouillet não era abrir a possibilidade de negociações directas entre as partes interessadas (Sérvios e Albaneses), ou de encontrar uma qualquer solução política, mas muito mais criar um pretexto para justificar o ataque, o que Henry Kissinger tinha já claramente assinalado em 1999, ao precisar que [Rambouillet] «serviu de pretexto para começar os bombardeamentos».
Na sua mensagem escrita, Willy Wimmer ressalta que [segundo o próprio organizador] «a guerra contra a República Federal da Yugoslávia foi desencadeada para corrigir uma decisão errada do general Eisenhower que datava da Segunda Guerra Mundial».
Por conseguinte, era necessário estacionar ali tropas norte-americanas, por razões estratégicas, o que não foi feito em 1945. Com a construção no Kosovo da base militar Camp Bondsteel (Laço de Aço)– a maior da Europa – os Estados Unidos puseram em prática a posição expressa na Conferência de Bratislava, onde afirmaram que «por razões estratégicas, era preciso estacionar soldados americanos nesta região».
Na sua carta, Wimmer afirma também – no ponto 1– que «os organizadores pediram que se procedesse o mais rapidamente possível entre os aliados ao reconhecimento de um Kosovo independente no plano do direito internacional», enquanto a «Sérvia (como Estado sucessor da Yugoslávia) teria que manter-se de forma duradoura à margem do desenvolvimento europeu», (segundo Wimmer para garantir assim a presença militar norte-americana nos Balcãs).

Willy Wimmer sublinha além disso – no ponto 11–


«A constatação do facto que a OTAN não encontrou a menor oposição, ao atacar a República Federal de Jugoslávia, tendo agido contra todas as regras internacionais e, acima de tudo, contra as cláusulas imperativas do direito internacional».

No seu texto, Wimmer escreve também:

«A parte americana parece querer, no contexto global e com o fim de impôr os seus próprios objetivos, quebrar de forma consciente e deliberada a ordem jurídica internacional resultante das duas guerras do passado século»
O que significa que o direito internacional é considerado como um obstáculo ao previsto alargamento da OTAN.

E Wimmer finaliza:

«A Força deve passar por cima do Direito.»




Texto integral da carta dirigida, a 2 de maio de 2000, ao Chanceler da República Federal da Alemanha, Gerhard Shroder, pelo então vice- presidente da Assembleia parlamentar da OSCE Willy Wimmer.

Carta ao senhor Gerhard Schroder, deputado no Bundestag
Chanceler da República Federal de Alemanha
 
Chancelaria Federal - 
Schlossplatz 1, 1017, Berlím
2 de maio de 2000 

Senhor Chanceler:

No fim da semana passada tive a oportunidade de participar em Bratislava, capital da Eslováquia, numa conferência organizada conjuntamente pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos e o American Enterprise Institute (o instituto de relações exteriores do Partido Republicano) cujos temas principais foram os Balcãs e o alargamento da OTAN.

Participantes de alto nível participavam nesse encontro, demonstrado pela presença de numerosos Primeiros-Ministros assim como de ministros de Relações exteriores e de Defesa da região. Entre os numerosos pontos importantes que foram abordados no quadro do tema anteriormente mencionado, alguns merecem ser particularmente citados:

1. Os organizadores pediram o reconhecimento pelos aliados, tão rápido quanto possível, em sede de direito internacional público, do Estado independente do Kosovo. [1]

2. Os organizadores declararam que a República Federal da Yugoslávia seja colocada fora de qualquer ordem jurídica, sobretudo da Ata Final de Helsínquia. [2]

3. A ordem jurídica Europeia opõe-se à concretização das ambições da OTAN. A ordem jurídica americana pode ser mais facilmente aplicável na Europa.

4. A guerra contra a República Federal da Yugoslávia foi desencadeada para corrigir uma decisão errada do general Eisenhower durante a Segunda Guerra Mundial. Por razões estratégicas, é preciso colocar soldados americanos nesta região. [3]

5. Os aliados europeus participaram na guerra contra a Yugoslávia para ultrapassar de fato o dilema resultante do «novo conceito estratégico» da aliança, adotado em abril de 1999, e da inclinação dos europeus a favor de um mandato prévio da ONU ou da OSCE.

6. A despeito da subsequente interpretação legalista dos europeus, segundo a qual se tratou, nesta guerra contra a Yugoslávia, de uma ação ultrapassando o campo de atuação convencional da OTAN, estamos perante um caso de excepção. É evidentemente um precedente que pode ser invocado em qualquer altura e por qualquer um e que isso se irá passar no futuro. [4]

7. No quadro de alargamento da OTAN prevista a breve trecho, trata-se de restabelecer, entre o Mar Báltico e a Anatólia, a situação geopolítica que existiu durante o apogeu da expansão romana. [5]

8. Para lograr isto, a Polónia deverá estar rodeada ao norte e ao sul por Estados vizinhos democráticos, a Roménia e a Bulgária devem estar ligadas à Turquia através de uma ligação rodoviária segura e a Sérvia (provavelmente para garantir a presença militar americana) deverá ficar de forma duradoura à margem do desenvolvimento europeu.

9. No norte da Polónia, é preciso manter um controle total sobre o acesso de São Petersburgo ao Mar Báltico. [6]

10. Em cada processo, a prioridade deve recair no direito à autodeterminação, por cima de quaisquer outras disposições e regras do direito internacional público. [7]

11. A constatação do fato que a atuação da OTAN, contra todas as regras internacionais e acima de tudo contra as cláusulas obrigatórias do direito internacional, ao atacar a República Federal da Yugoslávia não levantou a menor oposição. [8]

Tendo em vista o nível dos participantes e dos organizadores, não podemos impedir-nos, no término deste encontro que se caracterizou pela franqueza, de uma avaliação das declarações proferidas nesta conferência.
A parte americana parece querer, no contexto global e para atingir os seus próprios objetivos consciente e deliberadamente quebrar a ordem jurídica internacional resultante das duas guerras do último século.   A força deverá prevalecer sobre o direito. Lá onde o direito internacional for um obstáculo, elimina-se o direito.
Quando algo parecido a isso sucedeu na Sociedade das Nações, a Segunda Guerra Mundial perfilava-se já no horizonte. Um juízo que considera os seus próprios interesses de maneira tão absoluta só pode qualificar-se como totalitário.
Rogo-lhe aceite, senhor Chanceler, a expressão da minha mais alta consideração.

Willy Wimmer - Membro do Bundestag
Presidente do grupo regional da CDU do Baixo Reno, Vice-presidente da Assembleia Parlamentar da OSCE


O presente artigo foi redigido com base no trabalho «Was will die westliche Balkanpolitik?» e das notas do companheiro Andreas Bracher publicadas no Der Europäer, Jg. 6, Nr. 1, de novembro de 2001 e  publicadas em " Horizons et débats"


[1] Até ao momento, o Kosovo permanece sendo formalmente uma província da Sérvia, que por sua vez é uma República que forma parte da Jugoslávia. A manutenção desse estatuto foi uma condição prévia no fim da chamada guerra de Kosovo de junho de 1999. Oficialmente, a permanência desse estatuto faz até hoje em dia parte do programa do Ocidente.
[2] A Acta Final de Helsínquia, a também chamada ordem da CSCE, que assentou em 1975 as bases para una vida comunitária entre os Estados da Europa. Entre essas bases figurava a inviolabilidade das fronteiras.
[3] Isto parece referir-se à invasão dos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Churchill tinha solicitado, entre outras coisas, uma invasão aliada da região dos Balcãs. Em vez disso, Eisenhower, na sua qualidade de chefe supremo das forças aliadas, ordenou um desembarque na Sicília (em 1943) e em França (em 1944). Por conseguinte, nunca chegou a haver forças de ocupação ocidentais na região dos Balcãs.
[4] A OTAN empreendeu a guerra do Kosovo, em 1999, sem mandato da ONU. Um tal mandato teria correspondido aos desideratos dos governos europeus, mas não aos do governo dos Estados Unidos. Este queria atuar da forma mais autoritária possível e sem restrições internacionais. O que se depreende claramente dos pontos 5 e 6 é que, nesta guerra :
a) os Estados europeus ultrapassaram os compromissos com as suas próprias opiniões públicas em relação ao mandato da ONU e

b) que isto criou um precedente para futuras intervenções sem mandato da ONU.
[5] O Império Romano nunca alcançou o Mar Báltico. Portanto se supomos que Wimmer transmitiu corretamente as declarações, pode subentender-se por um lado o Império Romano, e por outro a Igreja de Roma.
[6] Isto significa pois que há que cortar o acesso da Rússia ao Mar Báltico e afastá-la assim do resto da Europa.
[7] O relevo que se dá à questão da autodeterminação demonstra novamente o wilsonianismo dos Estados Unidos – referente à filosofia política do presidente norte- americano Woodrow Wilson – adversário fundamental, segundo Rudolf Steiner na fundação da tri-articulação social. Steiner considerava que era um programa de «destruição da vida comunitária dos povos europeus». O qual permite o desmembramento de quase todos os Estados europeus graças à exacerbação dos «problemas de minorias».
[8] Parece que são reações a reparos de Wimmer. Os participantes na conferência estavam perfeitamente conscientes destas violações das cláusulas do direito internacional público mas viam-nas com total indiferença.


Nenhum comentário:

Visitantes